terça-feira, 16 de novembro de 2010

2001: la nave que se vá


Como num sonho, a grande nave continuará sua jornada, independentemente de lembrarmos dela ou não. Como o sonho continuará sendo sonho, mesmo quando esquecido de ter sido sonhado. Talvez quando lembramos que o sonho é sonho ainda sonhando-se, ele se torne mais real, pois se aproximará do que de fato é; como na vida, quando lembramos que é vida ainda vivendo-se, se torna ela mais vida, mais cor e mais precisão. O infinito continuará sendo infinito querendo nossa razão contemplá-lo ou não , podendo esta alcançar seu fim ou não, ele continuará lá, para sempre, de onde veio, e para onde caminha, intocado pelas nossa certezas, inatingível pela nossa ciência, apesar de perscrutado pelo pensamento sem fim, incomensurável, que também nos habita, que também se pensa ser sem fim, pois dentro de nós, também está o infinito, vivo, em sonho e em realidade, misturando os absurdos da nossa finitude com vozes que destinadas estão a não se calarem nunca mais. Para o resto da vida, mesmo surdos para o mundo, ouviremos nossos fantasmas, mesmo sem fé, estaremos acompanhados e o peso das correntes ainda se faz ouvir balançado nos esboços de uma escadaria que todas as noites temos que cruzar para atingir o outro lado da escuridão, onde a luz não penetra nem para esquecer a dor de ser treva, e nada existe lá além de nós em plena contemplação de nossa solidão absurda, por ser ao mesmo tempo, tão impossível de ser real. Para onde vamos certamente condiz com o lugar da onde viemos.  Será que temos alguma idéia? Será que importa, ou que fingimos não se importar justamente porque importa por demais para deixar de se fingir um sorriso, e sorrir-se? Penso nos chips e na nano robótica... Será isso o infinito dentro de um mundo visível... Será apenas conceito e improbabilidade, ou o invisível esta sendo criado por nós para se infiltrar em nós mesmos, ao ponto de termos sentinelas nas veias se comunicando com o espaço? 2001 em sua perfeita odisséia inacabada, sem fim! Ali estava o infinito e o eterno retorno, ali estava o incompreensível alinhado com a poesia da musica e da imagem: penso em Strauss em seu Danúbio azul no celeste da Terra, e o mesmo Danúbio quando numa cena de La nave va, uma gaivota surpreende a mais alta casta de refinamento humano de uma época hoje morta em seu almoço. Com o pedigree do inesperado ela devasta o linear daquele salão com a mesma fúria que a autonomia de uma máquina rebelde desconstrói o previsível numa missão espacial. A nave de Fellini versus a nave de Kubrick, em paralelo no tempo que se dão, em transversal, no ponto que se cruzam, ambas em rumo ao desconhecido sondável pela razão, limitado em um destino, porém cercadas pela imprevisibilidade do mundo e de tudo que tange a existência. Uma em rumo a uma ilha para se dispersar as cinzas de uma voz, a outra, à Júpiter, para possivelmente se aproximar de uma resposta para as cinzas. Aquela pairando sobre a onipotência do oceano, absoluto e desconhecido, esta, cortando o ar sem gravidade, atravessando o mistério do espaço e seu infinito, sua perplexidade insondável. Ambas cercadas pelo incompreensível e pelo absurdo. A imprevisibilidade no timão dos acontecimentos. O inenarrável, já em Beckett o Inominável, e  em Ionesco, vejo seu rinoceronte desfilando pelo deck  do Gloria N., a nave que vai, e fatalmente, como sua irmã astronauta, não volta nunca mais. Rumo ao futuro, que não regressa ao passado, e que ao mesmo tempo, é conseqüência deste numa análise onde se abstrai o tempo e verifica-se que nada volta para lugar nenhum, quando nada vai, nada retorna, pois tudo acontece ao mesmo tempo, a ida e a volta, a vida e a morte, o infinito e o fim. Tudo é possível, e não existem limites. Não existem ponteiros. Por que não existe razão nem resposta para se limitar o improvável. Não existe nada de real além do gozo e da alegria de se pertencer a um instante tão alucinadamente quanto se pertence a uma noite de sono. Não existe memória que não possa ser criada, e desejo que não se realize, quando de fato se sabe o que desejar. E o que é saber desejar senão ir de encontro consigo próprio cada vez com mais precisão e sabedoria nos detalhes, cada vez com mais experiência e controle das perfeitas imperfeições que de fato não estão lá, e nada são além de meras aparências espectadoras da sua distração, do desvio, da luz que não refrata ao cego que morre de tanto ver, e mesmo assim, implora para nascer cego novamente? Strauss inaudível, surdo no espaço, colorido em todos os tons da Terra... assim ouviu Zaratustra em seu desejo, em sua metamorfose de Kubrick, que nos revela sem máscaras, e sem necessidade de temer o que não se sabe, de dizer o que não se aprende calculando máximas inverídicas num ábaco de prepotência e vaidade! Podemos muito mais do que “esqueletos que procuram aquecer-se” ou que disputam um enforcado na pintura de James Ensor, que escancarou as máscaras mórbidas do absurdo mordaz humano de se enfeitar com morais fadadas ao pó, ou com o tempo burlesco de convenções que retira do homem seu gesto natural de ser homem e o aproxima da carnificina de si mesmo. Não há o que julgar, e os canibais têm o direito de se devorarem se assim o quiserem. Não me digas como devo amar, apenas ame.  O que nos resta depois do silêncio? No vacum do espaço nossas palavras se desmancham sem sentido, porque brigar por um fora dele? Absurdo é sempre ter que justificar, absurdo é dizer não para os náufragos sérvios na iminência da 1ª guerra mundial ou na iminência de qualquer coisa. Como supor o confronto com a marinha austríaca ou a rebeldia de um computador projetado para obedecer, e mesmo supondo, como abandonar o humano a sua má sorte somente por que enfrentarei a proporção contrária? A antítese sempre se manifestará ao longo da vida por estar em sua essência, e da comunhão também virá a solidão, como da paixão o desespero, e do amor, a inevitável dor, de se amar, e de não se amar mais. De morrer sem conhecer tudo, quando de fato, só temos a nós mesmos para conhecer. Impossível não se entregar. E na alegoria do espaço ou do oceano, sendo o turbilhão de vida que nos cerca, de desejos,  convites, e mundos, e quartos e salas de jantar, sendo um navio ou uma espaçonave, nada mais é do que nós no meio da vida. Essa nave sou eu, e esse navio é você. Sendo que la nave va para o infinito, na odisséia do espaço de nós mesmos, que se confirma a cada dia, a cada hora, a cada instante esquecido de ser marcado pela imprecisão dos nossos relógios assombrados pela precisão incontestável da vida. Que venha o início, pois jamais foi tão mágico se aproximar do final.

Fernando Castro

em 15 de novembro de 2010, uma odisséia no quarto!!

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