sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Thelma&Luise

Na diversidade das colorações de uma palmeira, encontro dos teus olhos o verde. O verde castanho azul que me persegue... Nas possibilidades albinas de uma folha qualquer, em sua falta de pigmentação vejo toda a beleza contida num acidente, numa imperfeição, como um sorriso solto na paisagem, destilado, servido com sal e limão, atenuado pelo conforto do gelo, pelo calor de seu acolhimento no paladar... Pequenos goles, grandes mordidas... Pequenas lembranças, grandes momentos... A capota abaixada, o sol envenenando os olhos, rasgando a pele com sua fúria. O vento nos libertando de sua paixão incendiada, nos emprestando sua armadura para amortizar as delícias pirofágicas dessa queimadura de alto risco, desse calor em ebulição no corpo, na delícia de um beijo, na falta de controle em elevada temperatura... De carne e alma, de corpo e delírio... Mais nada dentro do quarto de um motel no fim do mundo. O ventilador divagando preso no teto, devagar tentando se libertar, girando em torno de si mesmo por todo o resto de sua vida, devagar tentando se soltar... Ventilando lentamente toda a poeira levantada daquela estrada de areia, daquelas molduras desérticas que abraçavam aquela hospedaria como se fosse um quadro esquecido na parede de um sótão, implorando atenção, pedindo para ser olhado uma última vez. O zunindo de duas moscas acrobatas emprestavam para a cena a sutiliza que faltava para se insinuar o desespero, a mortandade no meio do nada, o desejo de seca num cacto afogado de lágrimas e suor desprendidos dos corpos entrelaçados pelo feitiço da paixão. A mágica que lhe conduz até o fim do mundo, e lhe faz atravessar a civilização para não encontrar nada que não fosse o outro, e todo o resto, na areia e fumaça, simples esquecimento. É como o exílio voluntário aterrando todas as possibilidades de comunicação. É como o próprio banimento sendo servido no meio da tarde junto a generosas doses da tequila boiando no interior da garrafa, protegida pela transparência do vidro, contido pela forma de seu recipiente, como a paixão, que sem rédeas ou guia, se esparrama espalhando-se por tudo que lhe cerca... ela precisava daquela garrafa para se manter em pé, contida, para poder ser utilizada e servir de algum propósito, o de não ser manter em pé, o de não se conter, o de se esquecer dos propósitos! A cada passo, a madeira rangendo no piso comemorava o triunfo do instinto sobre o que ainda lhes restavam de razão. O tanque não passava de um quarto, e o intuito era ainda de prosseguir viagem. Avançar ainda mais para o infinito sem volta que os abocanhava, e não significava nada mais do que o fim. Aquela hospedagem de fato era o último fio de novelo que os prendia por um mero capricho do tempo, em farpa escorregando da porta, em um cabide de arame farpado sem condições de conter o peso da violência daquele vestido de sedução e loucura, que como chumbo, mergulhava para o fundo do oceano de terra e poeira, para as sevícias áridas daquele deserto... Alguns abutres sobrevoavam os telhados como augures a sua enunciação, prevendo a inevitabilidade pairando no ar, rondavam seu póstumo jantar com toda a ansiedade que as penas não sabem conter, e resmungavam consigo mesmo entre rasantes e bicadas por demais animais para um ser humano compreender.

-Eu não te amo mais, chegou a hora de partir!

Um misto de indignação e orgulho misturava-se naquelas palavras desgarradas do fundo de uma alma assolada por todo um turbilhão de sentimentos fervilhando numa caldeira de emoções quando, misteriosamente, o outro entranha-se em nossa realidade ao ponto de se fundir com o oxigênio. As lágrimas choravam para dentro. Aqueles músculos jamais se dobrariam para demonstrar a dor, e sem o fazer, já aclaravam tamanho sofrimento que compadecia tudo que de inóspito havia na Terra, e as rachas daquele solo árido e sem vida eram como se fossem um gramado de cores e seda se comparados ao seu rosto. O silêncio do outro respondia. Sabia que estava condenado. Sabia que havia lhe conduzido a loucura. Sabia que tinha feito ser irreversível. As balas do agora eram de metal. O último beijo era de sangue e alma, de carne e desejo... uma faísca de renascimento naquele vale da morte.

- Sempre o mesmo hálito de porco!

Mas aquelas palavras assinavam sua sentença. Eram como navalhas no último fio que o sustentava ante o abismo. Por um momento quis se arrepender do que havia dito, talvez mais por provocação e hábito do que intenção de ferir, mas já era tarde demais, e sabia disso. Dava-se a partida no carro. As trevas abraçavam a noite. A hospedaria era agora um ponto banido para a eternidade inalcançável que habita o passado. Nunca mais. Nenhuma palavra que não fosse o barulho do motor explodindo no espaço, e o atrito dos pneus arrastando aquela terra para o alto e transformando a poeira num véu do casamento que não aconteceu, costurado na traseira daquele cadilac 66 condenado ao divórcio na precoce sepultura, a dor na trágica despedida, ao choro preso na voz que engoliu o “me perdoa”. Acabava o combustível. Nenhum outro lugar na Terra para ir senão para o inferno. Até que ponto o continuaria testando? Até que ponto prosseguiria com aquele seu jogo absurdo? Uma palavra resolveria a questão. Um único gesto, uma só expressão. Estava tudo claro, todos sabiam, só era preciso dizer. Os dedos tremendo na coronha. Os olhos implorando por um estímulo para que pudesse frear suas mãos. Os maxilares cerrados. O coração na boca. Iria mesmo até o fim?... Permanecia impassível. Por mais que todo seu ser entregava-se loucamente, era uma estátua... O amava tanto que jamais poderia consentir que esse amor se tornasse real. Vontade de chorar, e gritar para o universo, porém os olhos freavam as lágrimas. Morria de tanto hesitar. Não dá mais para conter. O silêncio puxava o gatilho no instante em que os lábios estavam se abrindo para dizer. Tarde demais. O quanto de morte cabe num único instante de vida?

Um estouro rompia o silêncio. Gritos de profunda dor. Um instante depois, um segundo estouro. Os coiotes uivavam. Os abutres silenciavam-se. O quanto de vida cabe num único instante de morte? O cheiro de pólvora se misturava com o gosto das lágrimas perdidas no ar. O quanto de amor cabe num único instante de silêncio? A eternidade se cala. O quanto de silêncio é necessário para se ouvir eu te amo? Nunca mais. Adeus, os meus pecados desaparecerão como fumaça, mas o meu amor vingará para sempre.

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