sexta-feira, 14 de maio de 2010

DASLÚGUBRE

Os ventos calaram os versos de pesadelo dependurados nas janelas desses olhos tristes e vazios, condutores dos mesmos cavalos de ontem, metalicamente mecânicos no hoje, porém, com a mesma blindagem de casta que por si só, já separa o humano do seu ser!

Era de novo noite, na saída dos palacetes de lojas, que vendiam belíssimas e lutuosas vestes a compradores ainda sem noção da morte abrigarem dentro dos ventres, corroídos pelo verme que dilui os afetos, e os transforma em meras obrigações convencionadas. Na suntuosidade das paredes de pedra, o mausoléu também não era percebido, e ainda enterradas estavam as invisíveis cruzes ao longo dos corredores e salas, e lojas, e incontáveis lojas que perdiam-se nesses corredores mortos transitáveis apenas de dia, quando o consumo atingia seu auge, e quando os mortos saiam de seu túmulo para sem questionar o que de fato faziam, irem descarnados a procura dessa ilusão que os alimentava na crença de estarem vivos. Viciados, torpes, malditos. Eram os pilares desse mundo de sangue e insegurança, eram o piche semeador das estradas, a graxa negra que fazia as roldanas girar, a engrenagem não ranger, e a felicidade permanecer um mito e ideal a ser alcançado, uma espécie de terra prometida, ferramenta para semear ainda mais um desejo e esforço de continuar se fazendo o que sempre se foi feito, para um dia alcançá-la, merecidamente, como um prêmio, uma espécie de recompensa pelo pó engolido numa vida de mentiras e resignação aos pés de uma mediocridade velada e exaltada como um estilo de ser. Todos presos num claustro de preconceitos e vergonhas, e nojo a tudo que vida fosse, um nojo percebido em cada recriminação e gesto de desaprovação para com a arte de viver-se de fato. Uma animalidade tão atroz e bestial, que se o aço do bisturi se revoltasse contra a decadência, os rostos flácidos de lepra não mais sustentariam os sorrisos falsos nos coquetéis de paladares da cultura, e se desmanchariam no primeiro impulso de inveja contido, mostrando os monstros podres por trás de cada plástica máscara de cetim.

Era assim que os mortos se reuniam de dia, para dormirem sem saber que morriam, para não significarem nada além de potenciais reflexões não germinadas, que apenas transitam num limbo que chamam casa e cidade, e ocupam-se de modos e costumes que chamam hábitos, apenas para se afastarem da real constatação que de fato estão mortos, e nada fazem para viver, um segundo sequer, nada fazem para imprimir sua voz e seus reais desejos no mundo, que cansado do suor da morte, implora a esses bastardos da vida, um mínimo de humanidade! Era assim que o silêncio reinava absoluto naqueles corredores onde todas as pessoas do mundo falavam, sem nada dizer. Onde todas as bocas gesticulavam automáticas, rarefeitas, impessoais. Lábios de plásticas imorais manchavam de ácido as bordas de copos finos, em finas mãos famélicas e cadavéricas, de mortas finas, e mortos em morfinas de casamentos, de filhos, de pais, de irrefletidos dispendiosos natais na cruz, a mesma cruz invisível abaixo desses pés frios e atrofiados que já sangram para terra, e atiçam os vermes devoradores de carniças vivas e mortas; a mesma cruz no natal de fantasmas de medo, de pólvora, e sem Jesus.

Caia o crepúsculo nesses olhos de treva, e na tarde que dourava o céu num mundo que ainda nem descoberto sido tinha. As lojas logo encerrariam seu expediente, robôs de carne apodreceriam na cama de um estoque, e nas garagens, carruagens blindadas esperavam seu cocheiro, plenas de combustível de sangue e óleo de gente, de sacrifico humano desgarrados de vidas que por nada lutaram, sem conhecer por quem lutaram, e sem saber se de fato lutar precisavam. As mesmas artimanhas sutis e o engodo das pequenas vinganças mimetizadas com a moral fustigadora do sorriso das caveiras. Ainda o mesmo espírito de rancor movia o mundo dos mortos, e os impedia de viver. O mesmo sangue nos óleos dos tanques de combustível, combustava nas veias desertas de compreensão do diferente que era mais do que igual, era óbvio. Nada mais faria sentido naquele pedaço de vazio, de terra civilizada transformada em esqueleto, em parede desnutrida de proteção e propósito, transmutada em cela, em opressor concreto do aperto e da angustiante fome de sobrevivência, a mesma fome que atira os ratos para lutarem entre si.

Era assim que os tristes se despediam da vida. Era assim, que ao voltar para casa, farta de nada, de canapés, e de uma bebida que vinha de lugares que fingia conhecer, que ao esquecer parte de sua blindagem, ao ser relapsa com a automação de suas neuroses, com a eficiência das paranóias, com a trave de segurança que selava seu túmulo e transformava seu pequeno sofisticado metro quadrado em um lugar a parte, intocado, divino, seguro, que as pedras mortas de seu pescoço, as pedras de morte, infelizmente pedras mortas que brilhavam mais do que seus mortos olhos, convidaram a morte estranha para se sentar do lado direito da morta vida, no passageiro banco de um couro também morto. Ali, depois de anos ela via paixão, apesar do desespero, ela via verdade, apesar do medo, ela via vida. Somente um grito, e dois disparos. E a morte imita a vida. O carro morreu.

 
f.e.r.n.a.n.d.o...c.a.s......................................................................................................................................

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