domingo, 12 de setembro de 2010

A CASA

Nem uma folha mais para rasgar, nem sequer uma lágrima para borrar as páginas com as conseqüências dessa loucura infatigável, desse querer que ultrapassa qualquer limite, qualquer mínimo senso de noção. Assim estava a casa depois de uma semana, sem torneiras para chorarem as desgraças sanitárias, sem carpete para assolar em consolo os pés degenerados transitáveis, as botas enlameadas de chuva ácida e pó, e na cara, a maquiagem que se desfazia em lama, não mais era refletida para o próprio desprazer dos olhos, pois a casa também já não tinha mais espelhos. Apenas cacos, e restos de possibilidades que se desmancharam pelos quatro cômodos, acomodados pelo desencomodo constante desse querer insaciável, da vontade que não basta, e do fundo que se penetra cada vez mais em si mesmo. Já não se enchiam mais os copos, depósito dos pecados mastigados ao longo daqueles dias, e nas bordas, transbordavam-se vestígios de batom e esperma, de segredos e ansiedades, de toxinas temporárias que se desmancham ao tempo como os amores volúveis se desfazem numa única noite de orgia e paixão. Os cinzeiros transbordavam, e não havia mais espaço, não havia mais espaço para se respirar sem infecção, sem castigo, sem a substância do medo entranhada em cada molécula daquelas paredes degeneradas, contaminadas pelo excesso da insatisfação humana. Até mesmo a eletricidade havia sido infectada, e não havia mais energia. E se desfez a luz, e se desfez a energia, a trava de segurança... se desfizeram portas e janelas, e a fechadura estava lacrada para não mais entrarem amigos ou inimigos, nada mais entraria ali. O silêncio era o absoluto, e o vazio, intolerável.

Uma casa de mortos e bandeiras etnicamente ao acaso enfileiradas em seus campos,

Recordações de um amanhã sem personagem, de um andaime sem sustentação de ferro e oxidado pelos infinitos dentes que os vermes dos dias podem conter,

Rasga-se a carne com química de laboratórios clandestinos, e ao mesmo tempo, espalha-se a doença num banquete onde todos já estão infectados,,, o corpo de cristo virulento que devolveu a peste para Lázaro, e o fetiche dos meninos estuprados na cruz, amarrados com as faixas de pano cigano, perfurados com espinhos de rosas colombianas e virgens, rosas da morte!!!

Era esse o quadro do póstumo quintal, após as inúmeras deflorações da fauna humana, e das trocas lascivas das salivas bárbaras e decadentes dos hospedeiros do indecoroso prazer atemporal, do calor sem temperatura, do termômetro de sangue e mercúrio, onde os graus se medem pelo desnível de sofrimento e paranóia estabelecido no interior desse vício, algazarra sem fim, final sem história, onde o resultado sempre gera o início de mais esforço para se livrar da dor....

De que forma permanecer na razão, de que jeito sublimar o impossível passado enterrado no terror da memória, algoz insondável e carrasco da auto-estima do seu inevitável amanhã? O estômago continua ardendo pela fome de mais fumaça cristalizada, juntamente com suas paredes ulceradas que choram por um momento íntimo de descanso e paz, fazendo de todo o complexo, essa eterna contradição pulsante de se estar vivo, da forma que se reconhece a vida, do modo padronizado e costumeiro, gaiola de servos e deuses, de que se é viver! Deuses do inferno que se escondem debaixo da pia, por que não sugaram meus sentidos pelo ralo? Por que não engoliram meus dedos no triturador de lixo instalado em todas as cozinhas, e fizeram de meus pesadelos pedaços de noz para se misturar junto a farinha de trigo e ao cal do cimento que ergue os moldes da nossa rotina? Das nossas desculpas para se interessar pelas coisas, como se de fato, fosse algo que realmente pudesse valer a pena, algo que mais do que uma distração, pudesse permanecer concreto nessa eternidade de vento e poeira, de imagens desmanchadas com o balançar das águas do Letes...

Um feixe de luz penetrava a sala escurecida pelo natural vacilo da persiana que ainda sobrevivia e mantinha-se sentinela compacta e exemplar ante as possibilidades de interferência naquela treva de meio dia, onde apenas alguns insetos zuniam, e até mesmo as baterias alimentadoras dos ritmos do antes de ontem haviam desistido de insistir na sobrevivência sem ar, e já haviam doado até a última gota d’água radioativa para transformar a ausência em movimento e vida. Bastava apena um feixe para contrastar os medos com os ácaros do ar viciado, e o mofo daquela sala sem esperança, sem continuidade, sem barulhos. Os móveis mais imóveis do que nunca, e os agora imóveis, nunca mais voltariam a andar. A morte era mais um pedaço de cimento e parede dry wall, onde o enterro se transformava em praticidade de gesto e solução, uma vez que não seria feito em alvenaria, em ritual, em significado, exatamente como aquelas paredes, levantadas com os beijos do vento, e derrubadas apenas com uma inadvertida cuspida deste senhor das tempestades.

Como os amantes se permitiram subtrair a vida daquela forma? Como aquela casa ainda se manteria em pé, tendo sido devorada pelos alicerces através do poder que a confiança pode dar à traição? Ingenuidade e compulsão pela vida substanciam o substrato da tragédia.

Os refrigeradores ainda estavam completos de sobras de poentes sem sol, congelando copos e líquidos e restos de alimentos condenados a putrefação, detritos do nunca mais engendrados num intestino estripado para fora do corpo, dependurado ao longo da banheira de fórmica e perfeição técnica, prometida para todos os prazeres da terra, e revelada como o portal para todos os desgostos do submundo. Um intestino redecorava o banheiro, e um corpo nadava aos pedaços no amar vermelho da auto-destruição, para nunca mais voltar sequer experimentar o quanto de sal cabe numa única gota de mar.

Até que ponto de fato valeu a pena, mesmo com a imensidão da alma, mesmo com a irrestrição do olhar, mesmo com o máximo da experiência?

Até que ponto ainda a lâmina da faca permaneceria muda para os jornais, e a repulsão por si mesmo não seria revelada nas primeiras páginas de um folhetim barato de fofocas obtusas e desreguladas pela própria frustração de quem as faz?

Um rato penetrou na sala de jantar, e roeu as veias do anfitrião até este se debater no chão por ansiedade de mais vida e certeza do abismo diante de si. A diversão se dispersava nos olhares tristes e indignados do que sobrava de seu gene pelo mundo, e dos poucos amigos que de fato não corroíam sua carne com a acidez de cáustico paladar, de palavras mudas de venenos, porem impregnadas de mortalidade inaudível. Era assim o final da festa, e como o improvável possível se fez acontecer naquela interminável semana de prazer. Era assim que os medos se tornaram reais, e a alucinante e infantil paranóia se consagrava com uma coroa de veludo e diamantes em cima de uma cabeça de pedras de cristal e ampolas de vidro.

O inofensivo estava ali, brilhando nos olhos de um estranho, na pele marcada de um alguém para além do conhecimento. E ele havia sido convidado a entrar, alto, com sua tatuagem brilhando no braço, com seu sangue latino e olhos claros caucasianos misturados na face. Olhos de segredo e mistério, olhos de serpente. O sangue frio se camuflava no calor dos toques e na intensidade de cada beijo que cuspia morticínio invadido de ternura e proteção. Ali estaria a segurança, o prazer, a loucura interminável, e o amigo perfeito, não fosse pelo fato de nunca sequer saber quem, o que, e da onde vinha aquele sujeito com o rosto de anjo no seu coração de Judas.

O erro já estava configurado. O estanho já estava dentro de casa. Acordando os demônios debaixo da cama, e aproximando as trevas aos travesseiros. O acesso garantido, o código do portão, a chave da porta. Mesmo a intimidade construída em 5 dias de abstração e descompasso não asseguraram nenhuma estabilidade emocional, e certamente não evitaram a pulsão máxima do descontrole, da sensação entorpecida por uma faísca de desentendimento, de lapso do racional, do linear, do lógico. A morte havia sido literalmente convidada para entrar e se estirar no sol do meio dia daquela varanda de pensamentos inocentes, de rios intocados pelo impuro das civilizações metálicas e alfabetizadas sob o gosto vil da piteira sarcástica que fumava almas enroladas no papel do dólar. O assassino trazido da escuridão de um club do fim do mundo não poderia se assemelhar em nada com o auto-retrato de um psicopata americano, estereotipado nas telas de cinemas descartáveis em mais de meio século de hegemonia de imagens manipuladas e mascaradas pelo recorte do inapreensível, do sutil, do gosto de cupim nas entrelinhas do lábaro estrelado. Era assim a sedução encarnada na pele de um homem, de um cheiro animal nos dentes canibais de um sexo sem limites de expressão, num toque sem vexame ou comedimento, onde a urina penetrava nos canais mais íntimos que a intimidade poderia consentir, e se curvava ante o absoluto da novidade da experiência, se fazendo existir para alem da metafísica das compreensões modernas de se fazer amor. Era assim que a inocência se apaixonava pela sujeira da poesia sem contenção, desses ferros transformados em brinquedos para investigar as sensibilidades da uretra, e dessas borrachas moldadas pela mais pura liberdade de uma fabrica de chocolates para adultos. Era assim que a tranqüilidade pressentia a tragédia, e o inicio do fim. O jardim estava condenado, e as plantas morreriam de fome, de pânico, de calor, de inanição. A rosa deflorada pelo excesso de G., descosturada em seu ponto G., alimentada de palavras sem sentido, adubada por promessas em baixo da terra, e sepultada para sempre na xenofobia do estrangeiro.

Também não existia mais consciência, tampouco chance de defesa. Inerte e submergido, estava livre nos braços do outro, sem sentir o peso dos seus. A boca mastigava frases sem a menor esperança, e os olhos frios já se despediam do comum. Sua cabeça era pressionada contra a implacabilidade do metal que recheava aquelas torneiras reluzentes, com violência e continuidade. Golpes de velocidade e precisão. Uma, duas, três, cinco, dez pancadas, até que o rosto já se desfigurava por completo. Não restou muito daquela beleza sem contingência, irretocável, sem censura. Não restou muito de nada. A história de amor se desmanchava nas verdadeiras intenções daquele abjeto covil impregnado de humanidade, demônio sem asas disfarçado de homem. Seus olhos brilhavam com suas novas aquisições, as roupas caras e os perfumes, e os eletrônicos meios de continuar a se comunicar com suas maldades e egoísmos. Algum dinheiro também fez parte da trama, assim como o cúmplice para estacionar um furgão em plena luz do dia, e remover cada talher daquela casa de veraneio. Não sobraria mais nada, além daquele corpo debulhado pelas piranhas selvagens do asfalto, e de uma pesada cama com os restos de pólen dessa flor de libido e vermelha de paixão.

"Era uma casa bem desgraçada, não tinha mais vida, não tinha mais nada. "

 
Fernando Castro

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