terça-feira, 13 de julho de 2010

Madame Enila

Ela ainda era velha, e permaneceria em silêncio para o resto dos seus dias. Isso não mudaria quase nada daquilo que sempre foi, um simulacro de paixão, silencioso, um coração em cima da mesa de jantar que se esquece de bater. O sangue ainda jorra pelo lado esquerdo de seu rosto, manchando um pouco mais maculado corpo com os vestígios de um desespero que não se encaixa na vida. Viver era sofrer, e a cada tilintar das horas seus olhos secavam ainda mais, por mais que insistisse em sorrir, em sua face uma cicatriz de tristeza já havia paralizado seus músculos, e a pele como pedra, trincava, fazendo sulcos e trincheiras em sua palidez facial. Seu nome era Enila, Madame Enila, assim gostava de ser chamada por seus alunos, assim seria lembrada nas horas escuras do dia, nos intervalos hostis das aulas ministradas com rancor e frustração, por não ter, como aqueles alunos, continuado a perseguir a vida em todas as possíveis formas de existir e transgredir. Não sabia perdoar, e fazia questão de envenenar o ambiente exalando esse forte perfume misto entre convulsão e crítica mordaz. Suas palavras atemorizavam os pequenos estudantes, que muito não sabiam do poder infausto da vida e seus abismos. Eram jovens, queriam sol e música, queriam cantar com os amigos e nadar no mar, queriam não ficar de recuperação em pleno verão, queriam sorrir. Madame Enila não podia compreender a felicidade contida no sol, talvez por nunca ter olhado para ele sem óculos escuros, talvez por nunca ter pensando que ele é imprescindível para nossa existência. Sua maior companhia era um gato preto, vivo, e um outro branco, empalhado. Sua consciência mórbida das coisas chegava ultrapassar os labirintos da imaginação e se projetava tão pugnazmente na realidade, que chegava ao ponto de chocá-la. Seu figurino também era preto, roupas de tule negro misturados com xales e linho faziam dessa senhora um ponto exótico no meio do fim do mundo. Pouco restava dos seus dentes, amargurados pela falta do riso, e pelo excesso de censuras. Seus lábios recortados equiparavam-se a aridez de um tapete de caatinga, no auge da seca, onde apenas abutres e roedores escolhiam a cena para desfilar. Não chovia em seu olhos há mais de década, e a rigidez de todo o seu caráter jamais permitiu com que Madame chorasse. Pobrezinha, ainda acreditava que sempre foi justa, e estava a cima do comum, da causa ordinária; acreditava que devia-se ter uma causa, apesar de nunca ter ficado muito claro pra ela qual fosse. Impecavelmente pontual, fazia da engrenagem de um carrilhão competidor iniciante, pois estava sempre mais pontual que o próprio relógio. Cobrava essa sublime perfeição de cada um a sua volta, e fazia seus alunos perderem quantas viagens quanto necessário para aprenderem robotizarem seus hábitos. Considerava seu fanatismo como sendo classe e etiqueta, e adorava dar aulas sobre como se portar em todos os lugares, nas mais diversas situações. Tinha resposta para tudo, e de tudo certa estava que seu ponto de vista era incorrigível. Apesar de não sorrir, conseguia sarcasticamente distribuir conselhos e lições de moral. Era impagável, Madame Enila, em todo seu linguajar, em toda sua robustez, jamais se viu professora como essa nos confins da humanidade. Ossos a flor da pele rasgavam o quase nada de carne que cobria o quase nada de vida, guardado por uma magreza gélida o suficientemente azul para delinear os limites de um necrotério em suas entranhas semi vivas. Uma clara antecipação da morte. Uma negação da vida.

O sol tinha ainda mau se declarado nesse dia de despedida. O cinza e a palidez do amanhecer escondiam o aviso fúnebre que chegaria de imprevisto. Por alguma falha ou precisão, seu despertador não tocara aquela manhã, e seus olhos se acostumaram a permanecer fechados sem ele. Pela primeira vez em anos de docência chegaria atrasada. Isso seria por demais indecente. Teria que abrir mão do mingau com aveia de todos os dias. Apesar de morar a algumas quadras da escola, essas quadras teriam que ser percorridas, e suas pernas já não eram tão lépidas quanto nos dias de sua mocidade, de sua interrompida volúpia. Ainda bem que não usava maquiagem ou perfume, pois não haveria de perder tempo com essas bobagens. Naquele mesmo dia, outro despertador havia se atrasado. Diabólica coinscidência. Um de seus alunos já enfrentava o desespero, frente a pavor imposto por Madame Enila aqueles que não se mostrassem presentes nos primeiros 5 minutos de sua permanência em sala. A mãe do menino fazia de tudo para aliviar o fardo do filho, pois mais do que ciente, já estava cansada desse temor infundido pela professora as crianças. Tinha tido algumas poucas palavras com ela a dois anos atrás quando o menino não fora considerado apto o suficiente para passar de ano. Poucas e suficientes palavras para a mãe reconhecer sua impotência frente a amargura inamovível de Madame Enila, e amaldiçoar aquela velha bruxa por sua intransigência. Era uma mulher de decisões irreformáveis. “Vaca, tomara que morra!” Não deixaria seu pequeno ser humilhado de novo, ser impedido de assistir a aula, carregar mais uma falta por falha técnica do seu despertador impreciso. Não, isso não iria acontecer, nem que para isso fosse preciso atravessar um farol vermelho. E foi justamente a 10 metros do colégio, que os espíritos do passado levantaram das tumbas que guardam os destinos e as desgraças humanas para cantarem o hino da maldição atemporal, aquela apta a devorar seus pedaços em qualquer lugar da linha do tempo. Abria-se o túmulo de Pandora onde dormem as Eríneas vingadoras. A professora ofegante em sua pressa, estava mais distraída do que nunca, e só enxergaria o mundo de novo quando atingindo seu destino final. O farol de fato estava vermelho. A mãe não teve tempo de brecar, e confesso que sentiu uma certa satisfação pessoal inconsciente. Nunca esqueceria aquele rosto, esmagado no seu pára-brisa estraçalhado. Madame teve tempo de uma última olhada para dentro do carro, para os olhos daquela mãe que reconhecia atrás do volante. Pura ironia, lembrou que na ocasião a recebeu na porta, e nem ofereceu um café! Um barulho de pneu rasgando o asfalto assustava os pássaros. Agudo. Vermelho. O cemitério local ganhou mais um pouco de adubo, e as aulas estavam suspensas até segunda ordem.

fernando
castro

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