ATO I
Numa sala, devidamente simples, com uma janela em luz crepuscular, um sofá velho e rasgado, e uma mesa redonda. Também se ajuntam aos objetos um bar, com várias garrafas de diferentes cores. Raimundo sentado, em prolixa paz aflitiva, falando ao pensar sozinho.
RA: Não entendi ainda a complexidade da vida. Faço o que faço porque isso me dá prazer, também porque talvez seja a única coisa que sei fazer. Não tenho e nunca tive vergonha, ao contrário de muitos que fazem apenas pelo dinheiro. Alguns ainda carregam a convicção de que são profundamente hétero, e usam a desculpa do dinheiro, usando suas necessidades de comer, de pagar aluguel, de ter algum no bolso, como mero pretexto para autorizar aquilo que no fundo querem fazer. Precisam de uma desculpa. Como o meu colega, que divide esse apartamento comigo. Sempre achei nele algo de mal resolvido, mas sua postura inabalável, não dá o braço a torcer. “Somente por grana”, e não se permite viver livremente seus desejos. Fica até com raiva, quando está trabalhando e sente o prazer que seu cliente está experimentando. Juro que sei que queria poder estar em seu lugar, e esse conflito mal resolvido, cria um certo bolor dentro, um ressentimento, que leva a raiva, que leva a agressão. Por isso já foi até preso, por quase matar um freguês, com socos e tesoura. Cumpriu sua pena, achei que depois de lá, teria tempo o suficiente para refletir, e mudar. Mas não, parece que endureceu ainda mais. Confesso, aquilo que eu acho que ele sabe, mas nunca tocamos no assunto. Sou apaixonado por ele. Por isso estou pensando seriamente em sair desse apartamento, pois cada vez que quase rola, nos dois aqui nesse sofá, ou na cama que dividimos, pois só temos um quarto, essa atitude “só por dinheiro” domina a cena, e não conseguimos, não consigo atravessar essa barreira. Essa poeira que nos encobre, e nos impede de sermos um casal feliz. Não tenho ciúmes, como sei que ele tem de mim. Fica mesmo emputecido cada vez que vou atender, muda a expressão, se resfria, e até os músculos da boca se enrijecem, mas não admite. Como se tivesse medo de amar. Não sei se toda essa criação extremamente religiosa que teve, ao perder o pai, sobrou a mãe rigidamente evangélica, se fechou dentro de um casulo, e usa o dinheiro como desculpa para satisfazer os prazeres da carne, diz que é hétero, mas nunca sai com mulheres. Estranho demais, claro demais. Não estou suportando mais isso. Mas hoje eu preparei uma armadilha. Vocês vão ver só.
Reginaldo entra, com sacolas de bebida, fumando um cigarro.
RE: e ai? Trouxe uma cervejas, e uma catuaba. Vamos tomar umas?
RA: Claro. E aí, me conta, como foi o da vez?
RE: Uma merda. Um gordinho tarado, que não gozava nunca, eu não aguentava mais, não sabia o que fazer pra ele esporrar, dai pus ele de quatro, e comecei a empurrar minha rola no fim do mundo, sabe. Ele não aguentou, a próstata enfim falou, e terminei o serviço. Cheiro ruim, mas valeu, me rendeu 300 pratas.
RA: Que beleza! Podia ter sido pior. Eu também não tenho muita paciência com quem não goza rápido, mas se o gajo for como eu gosto, não me importo de passar a noite sem cobrar o extra.
RE: Você não é um profissional. Nos envergonha, nos desvaloriza, se desvalorizando.
RA: Eu não me desvalorizo, apenas me permito aproveitar o momento que está me dando prazer. Imagino, fantasio minha vida por uma noite, junto aquele que poderia ser meu companheiro de verdade, e não tenho o menor pudor, as vezes faço até de graça.
RE: Por isso que está sempre duro. Eu que abasteço a geladeira, porque você não consegue agir profissionalmente. Temos nosso código de ética também, ou pensa que só porque somos garotos de programa não temos uma linha de conduta?
RA: Não penso assim. Vamos tomar aquele drink? Quer que eu preparo?
RE: Não precisa, eu faço!
RA: Então, acho que temos o direito de não agirmos apenas profissionalmente, e as vezes algo que começa com um atendimento, termina com uma maravilhosa orgia, ou até mesmo com algo onde existe afeto.
RE: Há, não brinca. Você acha que vai encontrar um marido, sonha com seu príncipe encantado, mas não consegue enxergar uma verdade simples. Tudo que eles querem é sexo, nunca nos enxergam como humanos, e sim como objetos. Isso me emputece, que as vezes tenho que me segurar para não meter a mão na cara desses filhos da puta.
RA: Já aconteceu com muitos, homens que não tem vergonha de assumir quem ama, ou gosta, e de um, dois, três encontros nasce um namoro, que termina numa união. O próprio estilista, qual o nome mesmo dele, que namorava aquele ator porno..
RE: O...
RA: Ele mesmo. O Marc Jacobs.
RE: É, mas vê se eles ainda estão juntos? Terminou o desejo e ele deu um pé na bunda do sujeito. É isso que dá, misturar dois mundos incompatíveis, dá até em tragédia, não lembra daquele outro famoso, que foi assassinato, qual era mesmo o nome dele..
RA: O Gianni ?
RE: Isso mesmo, o Gianni Versace. Se envolveu demais com quem não devia. O cara que era mesmo um psicopata, e um obcecado. Poderia ter acontecido com qualquer um.
RA: Eu não te entendo, pelo menos comigo não há sofrimento. Se ao menos você conseguisse se libertar dessa carga e se divertir um pouco.
RE: Me divertir, com esses velhos nojentos, que tipo de diversão é essa? Ser obrigado a fazer cada coisa que nem aqui posso dizer, pois as paredes escutam demais, que cada vez mais me aproximo do lixo que existe dentro de mim.
RA: Tudo bem, não são todos os clientes que vão te dar prazer. Mas você também não é obrigado a aceitar o serviço. E na real, hoje em dia existe tantos playboys quanto velhos fedidos, e playboys lindos. Você mesmo ontem me disse que o menino tinha olhos de diamante e um corpo perfeito. Ele queria dormir com você.
RE: Mas não quis pagar o pernoite.
RA: Não quis ou não tinha dinheiro?
RE: Pra mim pouco importa. Não paga, não leva!
RA: Está vendo, você voltou pra casa e passou a noite dormindo, roncando, e sonhando acordado, sofrendo de insónia, enquanto poderia estar lá, com seu menino, curtindo numa boa.
RE: Eu já disse mil vezes. Nasci hétero e vou morrer assim. Só faço pelo dinheiro.
Reginaldo prepara novos drinks.
RA: Olha. Já cansei de desse seu papo. Não sei que mal tem em assumir que gosta de transar com homens, que vergonha existe nisso. Não precisa usar o dinheiro como desculpa, é um jeito de ser, um life style, é o que somos, cobrando ou não, transamos, no fundo é isso.
RE: Não é isso. É uma questão de honra!
RA: Há, questão de honra. Feito aqueles maridos que se dizem hétero, casam, tem filhos, vivem com a mulher aparente, e saem de noite em busca de travestis, de miches, de putos... acha isso decente?
RE: Ninguém é obrigado a mostrar o que não quer!
RA: Mas esconder o que é obvio para todo mundo é simplesmente ridículo!
Você acha que não mostra aquilo que todos veem. Esta estampado na cara, somos todos putos no final. Mas acho que existe uma diferença entre “putos” e “putos”. Tem que ter dignidade, e isso se prova com a leveza e transparência de não termos vergonha de sermos quem somos. Somos muito mais honestos do que muito letrado e gente com diploma, gente importante que rouba, frauda, fomenta corrupção, somos muito mais verdadeiros do que esses políticos filhos da puta, os verdadeiros prostitutos do país.
RE: Está me chamando de indigno? (exaltado)
RA: Quase isso. Acho que a palavra mais própria seria covarde.
RE: Eu arrebento você hoje mesmo?
RA: Então vem, porque não encosta em mim, tem medo de que? Ou acha que não pressinto seu desejo. Somos filhos do instinto, e ele nos guia ao longo da vida, quando a razão falha, e as vezes temos que sermos irracionais, para deixarmos nossa essência se sobrepor aos conceitos preconcebidos e construídos culturalmente, as amarras que estão postas em nossas mentes, e nos trazem culpa quando deveria ser alívio e satisfação, que nos traz arrependimento, quando deveria ser puro êxtase e diversão.
RE: eu só não arrebento sua cara agora porque é meu amigo, e sei que não quer me ferir com essa sua filosofia, já disse que devia parar de ler esses livros do diabo...
RA: Por que não chega mais perto? Me da um tapa, um tapinha de brincadeira?
RE: Continua me zoando, só não arrebento sua cara porque ainda não estou bêbado o suficiente.
RA: Você não assume. É tão mais simples. E ainda dizem que levamos uma vida fácil. Quero ver da noite por dia um Mauricinho vir parar debaixo da ponte, ter que dormir na rua, você acha que ele ia se virar como? Ai sim, entendo que possa haver um certo direito, que o dinheiro inicialmente fale mais alto, e seja a única condição, pois ele precisará comer, mas certamente, com a repetição, se ele se libertará dessas correntes sociais, vai aprender que existe prazer, a extrair o prazer do fel, e não vai mais deixar o fantasma da culpa frente a suposta indecência dominar sua consciência, será leve, e livre. Simplesmente terá conquistado a si mesmo, e se readaptado. Adapte-se ou morra. Já que não temos mais luz, porque a conta não foi paga, hipoteticamente, melhor sorrir num jantar a luz de velas, do que ficar reclamando que não é mais possível enxergar os detalhes do rodapé.
RE: Acho indigno mesmo, a prostituição. E acho que esse Mauricinho nunca vai de verdade aceitar sua condição.
RA: O que há de indigno? Não dissecamos leis, sequer machucamos ninguém, damos prazer a quem precisa, damos atenção a quem sofre de certa carência, damos companhia a quem precisa por um momento na vida, se livrar da solidão.
RE: Se vender por dinheiro?
RA: Mas todo negocio é assim. Se vende algo por dinheiro. Não sei porque ainda existe tanto preconceito em volta disso, e porque somos vistos como marginais? Isso é coisa de país atrasado culturalmente. Sabe que na Europa em muitos países onde a prostituição é legítima e considerada uma autêntica e respeitável profissão?
RE: Mas nós não estamos na Europa. E eu estou dizendo de algo que existe dentro, de um certo princípio, de valores, de moral, de respeito.
RA: Vou te emprestar alguns de meus livros. Você precisa abrir sua mente. Moral é nada mais do que uma construção artificial elaborada pelo homem através da experiência da cultura e dos costumes solidificados em hábitos que se tornam leis, e em alguns casos as sobrepõem, tornando-as ultrapassadas. Elas mudam conforme o vento. Ela é desfeita e refeita, conforme passam-se os séculos, e nos libertamos cada vez mais dessa rigidez que por milênio foi imposta em nosso ser, na era medieval, quando a igreja quis poluir e enganar, aprisionar as pessoas em suas próprias mentes, para apenas controlar, pelo temor a Deus. Se existe um Deus, o nome dele é Liberdade.
RE: E os princípios, o carater, a integridade? Não vejo nada disso quando vendo meu corpo.
RA: Você não vende seu corpo. Esse jargão é coisa de gente burra e que não pensa. Você proporciona prazer, volta pra casa com a mesma quantidade de membros que saiu. E se quer saber mais, caracter implica justamente em você assumir quem você é, e os seus desejos, sem se esconder atrás de si mesmo. Ser leal a você mesmo. Isso é ser íntegro. Acho que esta precisando de mais uma dose?
RE: (no sofá) Eu vou preparar.
RA: Não, relaxa ai. Deixa que essa eu faço. Aliás, tenho uma surpresa pra você.
RE: Não me diga, uma casa própria?
RA: Não. Melhor! (joga um saco gordo de coca em cima da mesa e ri). Já prepara duas taturanas. Essa é a melhor que está rolando. Peguei com o Mike.
RE: Ainda prefiro a casa própria, mas até lá podemos nos alojar dentro de nós mesmos, a casa está muito limpinha, estava precisando de um pouco de pó.
RA: Limpinha porque quem faxina as coisas aqui sou eu, ne, espertalhão, porque você além de ser um viado enrustido é um porco.
RE: (já dando o primeiro tiro) Viado enrustido o caralho, sou homem, e muito macho.
RA: E o que tem isso a ver? Por que um homem muito macho não pode ser um viado enrustido? Aliás, esse negócio de associar masculinidade e força bruta, com heteronormatividade, já é coisa do passado e não cola mais. Muitos gays são absolutamente homens e super machos, e não se incomodam em dar o cu ao vivo se for preciso. Digo, mostrar o rabo pra os olhos invisíveis. Muitos outros são afeminados feito mancebos gregos, e garanto que transando dão tanto prazer igual a qualquer outro ser humano. Deixa eu fazer a minha. Respira fundo. Isso. (dá uma de entortar as pernas) Puta que pariu! (senta-se colocando a mão no joelho de Reginaldo, que num brusco movimento, não deixa transparecer repulsa, mas também não se deixa ficar a vontade)
RE: Boa não?
RA: Ótima!
RE: Esse Mike é um puto mas tem coisa de qualidade.
RA: Sabia que ele também faz programa?
RE: Claro, só que prefere ser visto como Dealer do que como puto, pra você ver como as pessoas tem vergonha de mostrar isso que você está tentando me mostrar.
RA: Não estou tentando mostrar, estou esclarecendo alguns conceitos. Onde estávamos mesmo?
RE: No viado enrustido!
RA: Exatamente. Acho que teve um período no mundo, que se assumir gay era quase uma obrigação, uma luta, um dever moral, para ajudar transformar a sociedade, e ampliar a visão, culturalmente, quebrar um taboo, e trazer legitimidade aos nossos encontros, ao nosso direito de casarmos e instituirmos família, de adotarmos filhos, e tudo isso e um pouco mais. Vergonha daqueles que não ousaram sair do armário e contribuir com a guerra social que começou em Stone Wall, em Nova York e pendurou até quase a década passada.
RE: Não, acho que nos anos 60 já abriram essas portas, e nos 70 isso já era uma atitude considerada normal.
RA: Sabe que a homossexualidade só saiu do CID, o código de doenças internacional, em 89 se não me engano. Caiu mais um absurdo junto com o muro.
RE: Foi em 17 de maio de 1990!
RA: Tanto faz, caiu quase junto ao muro de pedra, reverberação da essência da liberdade que começou a iluminar o mundo. Mas ai, o que aconteceu?
RE: Teve a Aids.
RA: A aids apareceu no fim dos setenta e aterrorizou os anos 80, levando milhares de pessoas a óbito. E serviu para estimular o preconceito contra nossa comunidade, contra os gays e todo o resto, e o que havia sido conquistado com a liberdade sexual, foi novamente trancado e perdido pela imposição dos valores desumanos da extrema direita, que sempre, se apoiando num conservadorismo que não existe mais, tenta sustentar um estilo de vida que foi enterrado e sepultado. Os valores de uma família tradicional, com papai, mamãe, titia. E seus filhos...
RE: Da puta!
RA: Exatamente, insistindo em cobrir o mundo com uma camada de pó, uma poeira que impede que as pessoas avancem na jornada delas mesmas, e se descubram, se entendam, resolvam seus conflitos, medos e dúvidas, e possam ser e existir tal como elas são. A Aids veio como uma foice da morte em cima de nossas desprotegidas cabeças, escalpelando nosso mundo como se nossa fosse a culpa da propagação desse vírus maldito, mas se esqueceram, ou não iluminaram os dados que comprovaram o aumento notório de casos de contágio em mulheres casadas. Ai está o ponto, se a família perfeita, fosse de verdade livre, talvez os maridos não precisassem buscar aquilo que não tem em casa, com suas “fat and pscycopatic wifes”, simplesmente por não existir ereção diante de um acúmulo de celulites, peles enrugadas, e vaginas que mais os amedrontam do que propriamente os excitam. Acho que tudo isso pode ser também visto através de um viés psicológico, pois se fosse interpretar a coisa como Freud, diria que os homens olham para essa abertura e não conseguem deixar de pensar em suas mães, mesmo que inconscientemente, quando no inverso, poderia se argumentar, mas quando nós gays olhamos para o falo lembramos de nosso pai, e portanto, num silogismo básico, deveríamos também ter aversão aquilo que mais amamos, um pau e um rabo, correto?
RE: (fazendo outra carreira) É, acho que estou te acompanhando.
RA: Então, veja. Aparentemente poderia se interpretar o caso dessa forma, se olhássemos superficialmente e com certa preguiça de pensar, ou certa intenção premeditada de chegar a uma conclusão apenas para determinar e afirmar aquilo que já estávamos previamente convencidos. Homem com mulher. E ponto, pois a consequência e o que justifica o sexo seria a procriação da espécie. Como se fossemos ainda primatas que não conseguiram emancipar-se de sua predeterminação genética, e conquistarmos através da razão o direito de expressarmos nossos instintos do jeito que quisermos, desde que respeitando o limite do outro, com controle e ausência total de culpa.
RE: Acho que você está viajando!
RA: Não, não terminei. O ponto é que se olharmos para esse afeto, esse prazer com olhos um pouco menos rasos, e vermos além, percebemos que nos esquecemos de um fato de crucial importância. Nascemos todos de uma vagina, ou você já ouviu algum caso de alguém foi parido por um cú? Certo?
RE: Ou pelo cu ou pela vagina, sei de casos de muita gente que sequer sabe da onde nasceram.
RA: Sim, está tocando em outro assunto. Estou apenas demonstrando que para um homem gay se relacionar com uma vagina, é um pouco complexo demais. Aliás, acho que todos os homens também sentem atração pelos seus amigos, mas reprimem isso por acharem que serão viados se derem-se o direito de brincar um pouco quando rola. Por isso que é na pré e na adolescência que eles se permitem a brincar juntos, sabe, uma punhetinha no sofá, uma gulosa na escada dos prédios, essas coisas que acontecem com aqueles que depois estão casados e são pais. Acho que se você tem firmeza de quem é, segurança de sua pessoa, não vai modificar sua identidade, se uma vez ou outra transar com um homem, mesmo preferindo transar com mulheres, não se sentirá menos hétero por isso. Nesse presente atual ainda nos agarramos numa definição, vício aristotélico, para termos certeza de quem somos. Precisamos de definições, rótulos, e identificação com grupos, lugares, estilos, pessoas, para afirmar nossa identidade e assim termos segurança de quem somos, mas acho que tudo isso não passa ainda de uma certa dose de insegurança da condição humana que precisa encontrar fora galhos para se agarrar, muletas para andar, como se não pudéssemos conquistar essa liberdade dentro, sem se importar com a rigidez e o aprisionamento, a limitação que qualquer rotulo, etiqueta, traz para a vida de uma pessoa.
RE: Como assim? Limitação, você sabendo que é hétero, você sabe o que fazer quando estiver diante de uma situação que te coloca a prova! Você sabe dizer não a um bofe que vem passar a mão na sua bunda, ou lhe encher a cara de porrada.
RA: Não exatamente. Você não entendeu o que quis dizer. Se agarrando num rótulo, por mais que você se identifique com um, o que é diferente de você se prender em um, pode trazer grandes prejuízos na sua vida.
RE: Quer mais uma linha?
RA: Mais duas, por favor. (pondo novamente a mão na perna de Reginaldo, que já finge que não percebeu, deixando ela ali ficar)
RE: Já está começando a exagerar. Mas enfim, continua, suas considerações são no mínimo notáveis, e carregam certa lógica, por mais que não concorde, ou ainda não concorde, com todas os detalhes do mundo que você quer pintar para meus olhos. Nossa, falei bonito agora, diz, quase que nem você!
RA: Você só não fala mais bonito porque esconde as palavras na sua mente. Mas continuando, o prejuízo que falo, é justamente quando, se o rótulo, o conceito, a formação complexa que temos de nós mesmos for mais forte do que aquilo que acontece no momento. Se superáramos nossos medos, ou aquilo que achamos que viveremos ao desfrutarmos de algo cuja consequência nos abalará em nosso intimo, como se fossemos feitos de lava e não de órgãos e pensamentos, emoções, sentimentos, entende o que digo, se estamos livres de nosso esqueleto conceitual, aquela teia de experiências e memórias que nos ajuda a nos confrontarmos com quem somos e afirmar nossa pessoa diante de qualquer um? Se estamos livres, ou melhor, se dominarmos nossos princípios, e não formos escravos dele, nos permitimos a viver muito mais, pois não teremos medo de experimentar novos sabores do mundo. Eu mesmo, já transei com mulheres, e foi extremamente agradável, através do sexo ganhamos intimidade, e nos tornamos amigos, se eu fosse um gay convicto e rígido, não teria vivido momentos que para mim hoje são inesquecíveis, e teria perdido duas amigas que até hoje fazem parte do meu mundo. Entende o que quero dizer, quando você, que se diz hétero, não se permite a fluir com o balanço dos seus encontros, não abre mão desse rótulo, transforma aquilo que poderia ser uma alegria, num esforço, num sacrifico, numa quase tortura.
RE: Eu não sei se concordo com você, pois de verdade não me sinto a vontade. Acho que é pelo preconceito também, de ser prostituto, quando no fundo queria ter tido a chance de ter estudado a ser um advogado por exemplo.
RA: Da mesma forma que existem “putos” e “putos”, aqueles que roubam os clientes por exemplos, eu nunca roubei nada de ninguém, também existem “advogados” e “advogados”, aqueles que defendem pedófilos, assassinos, corruptos, mesmo sabendo que eles são culpados. Acho muito mais digno ser quem sou, mesmo sem ter um diploma pendurado na parede, e agir honestamente com as pessoas, do que ter um titulo, uma posição e ser um devoto da prostituição, mas não da carne, da alma.
RE: Nesse ponto concordo com você. Você ouviu barulhos na escada, acho que tocaram a campainha?
RA: Não, acho que não ouvi nada. Mas ai, concorda que a verdadeira prostituição é da alma e não do corpo?
RE: Sim, concordo.
RA: Viu, como é simples. Acho que agora pode agir mais livremente, e se permitir a usar quem te usa, mas com o mesmo desejo. Que seja por uma noite, mas que seja uma noite que valha por mil. Quanto mais nos entregamos mais nos libertamos e atingimos esse lugar secreto e profundo que mora dentro de nós.
RE: Tudo bem, mas ainda não estou convencido. Existe além do preconceito, a necessidade de pagar contas.
RA: Você diz que é hétero, mas nunca te vi com uma mulher. E mesmo se fosse, como já dissermos, se está no controle de seus valores, organizados, se está dirigindo sua própria vida, e não sendo dirigido pelas mentiras artificiais que plantam em nossa mente, para nos castrar ao invés de libertar, fodera com homens, e mesmo sendo hétero, não terá crise de identidade, continuara sendo quem é. Da mesma forma que lésbicas, podem transar com homens, e não vão deixar de ser menos lésbicas por causa disso...
RE: Acho que estão tocando a campainha. Vou ver.
Reginaldo sai de cena, Raimundo dá mais um tiro, enquanto ele se demora, e sorri sozinho consigo mesmo no sofá, por sentir que quebrou um pedaço do gelo. Reginaldo volta com duas pessoas, o Leo, homem de seus 23 anos, olhos verdes, corpo definidamente bem trabalhado, e Kitanda, uma travesti de seus 30 e poucos, enérgica, imponente, com cabelos pretos, e botas pretas e altas de vinil.
RA: Olá meninos, que bom que vieram, estava achando que já tinham desistido.
KI: Imagina bebe, eu trouxe aqui mais presentes pro nosso regabofe, você acha que iria perder um chill out na sua casa. Você que nunca mais me convidou?
RA: Estive mesmo com muito trabalho. Leo querido, que bom te ver. Está melhor que nunca. (chega perto e o abraça sensualmente, lhe arrancando uma beijoca, Reginaldo olha se encolhendo, com leve demonstração de um ciúmes que talvez nem ele mesmo saiba que exista). Por favor, sentem-se, fiquem à vontade.
RE: Eu não sabia que vinham, senão teria ido pra casa do Mike pra deixar vocês mais a vontade.
KI: Imagina bebezão, você é o motivo de eu estar aqui. (encosta seus peitos em seus braços, e lhe aperta as bolas)
RE: Saiu muie!
KI: Gostoso. Tem certeza que não quer sentir isso (colocando suas mãos em seus seios)
RE: (levemente tímido, porem já embriagado e entorpecido, começa a acariciar os peitos da Kitana, Leo chega por trás, e começa a beijar o pescoço da boneca, e os três vão aos poucos se envolvendo, formando um belo trio, até Reginaldo escapar quando escuta Raimundo)
RA: Las rayas! Alguém quer um tirinho básico?
Ki: Acho que todos nós merecemos. Eu quero um na direita, mas sempre preciso me compensar com a esquerda.
RA: Engraçadinha!
LE: Bonito esse quadro! (olhando para um sulfite, com a cópia do Grande Masturbador, ilustrando a parede) Aliás, essa...
RA: Esse folheto!
LE: Isso, esse folheto. Meio perturbador, quem fez isso?
RA: Salvador Dali, um pintor surrealista.
LE: Quanta imaginação, mas não conheço!
RA: Um catalão, que conseguiu ao mesmo tempo fundar e ser expulso dos surrealistas. Estudou com Bunel e Lorca, três imortais da história, da arte, da pintura, e do cinema.
Foi excomungado da igreja também, que não suportava a verdade reveladora de suas obras.
LE: Gostei, tem nome essa gravura, a cópia digo, do quadro?
KI: O Grande Masturbador (Quase orgástica, sorrindo para o mundo enquanto proclama o nome do quadro)
RA: Exatamente!
RE: Eu nem sabia desse detalhe.
LE: Eu fiquei excitado com a ideia. Poderíamos nos inspirar nas cores e traços para nossa festinha hoje aqui no ap. do Raimundo.
KI: Acho que é melhor nos inspiramos no nome!
RE: Que ideia, dar um nome desses pra um quadro!
KI: Qual o problema? Vai dizer que nunca te obrigaram a colocar uma calcinha?
RE: Se ta loca! Já fiz muita merda, mas calcinha já é demais.
KI: E se te pagassem o dobro?
RE: Nem o triplo.
KI: Quanto você cobra o programa?
RE: Depende do cliente, mas no geral é 200 paus, isso antes da epidemia, agora é 300.
LE: Verdade, eu também subi meu cache.
RA: Pra quanto?
LE: Pra 500 reais!
RE: Quinhentos? E tem quem paga?
LE: Ah, já me pagaram mil numa noite e ainda me levaram para sauna. Isso com todas as drogas inclusas.
RE: Mentiroso!
KI: Verdade bee, você não viu o tamanho do pau dele, quase do tamanho do seu braço. Isso inflaciona a cotação do produto!
RE: Não vi e nem quero ver, estou bem satisfeito com o meu.
KI: Com ou sem calcinha?
RE: Já disse, não boto calcinha nem pelo dobro.
KI: E pelo triplo? (Kitanda tira do bolso um maço de notas de 100, e começa a contar até 9)
RA: Putz. Essa eu quero ver.
LE: Não da pra recusar.
RE: Por que não?
LE: Porque tudo tem um preço no nosso mundo. E estamos aqui para enfeitar e realizar as fantasias dos outros.
KI: Ele disse tudo agora!
RA: É verdade, o mundo seria muito mais triste sem profissionais como nós, digo, pessoas como nós. Imaginem um mundo sem prostituição?
KI: Impossível, por que sexo, apesar de ser troca de pele, sensações, um erotismo ancestral, também é uma comodite, uma das maiores do mundo.
RA: E ai Re, vai topar, qual é, são 900 pilas?
RE: Vocês estão tirando com a minha cara!
KI: imagina. Já vou colocar o dinheiro em cima da mesa.
LE: Prostitutos prostituindo prostitutos! Isso até parece Brasília!
RA: Vai bonitão. Sei que está precisando muito de dinheiro.
RE: Isso é verdade! Não mandei a mesada da minha mãe! Tah, chega de indecisão. Eu topo, mas só se todo mundo também tirar a roupa e ficar de cueca.
LE: Eu fecho!
KI: Eu fico de calcinha contigo....alias..
RE: Justamente, eu não tenho calcinha.
KI: Tudo bem. Eu fico nua. Só vou manter o casaco porque sou extremamente friorenta, e as botas claro, não saio de casa sem elas. (Kitana se retorce e tira a calcinha preta que joga para as mãos do Reginaldo)
Leo é o primeiro a se despir. Realmente escultural. Raimundo de costas para o público, tira a roupa. E Reginaldo, levemente constrangido, com a calcinha em mãos, vai até o quarto para se trocar, deixando um clima de silenciosa ironia, ou gozação, quando mesmo a intenção dos três é justamente essa, de quebrar o gelo, Raimundo apenas pensou que com reforços a tarefa seria mais fácil). Leo e Raimundo se sentam, Kitana vai ate o bar pega quatro copos de Vodka, e serve em cima da mesa, se sentando na poltrona do lado direito). Reginaldo volta ainda de calças.
KI: ué, cade essa verdade toda?
RE: Vim recolher o pagamento. Sempre adiantado. (Pega o dinheiro e volta pro quarto)
Os três se olham em com olhares de cumplicidade, e esperam. Leo e Raimundo brincam de leve entre si, se cutucam, até darem um beijo, que é bruscamente interrompido quando Reginaldo volta pra sala, de calcinha)
Ki: Maravilhosa!
RA: Que orgulho de você, está mesmo se superando!
LE: Me deu até uma ereção!
RA: Agora é serio gente, estávamos falando sobre as diferentes formas de amar, e como atravessamos uma tempestade, uma nuvem, tempos que era quase uma obrigação se assumir, assumir sua sexualidade, para expandirmos a consciência do mundo, para nos livrarmos dos preconceitos que nos obrigavam a andar em guetos, e ainda da sombra do HIV, que por mais que a doença já não trazia mais um atestado de óbito, fomentava o ódio e o desprezo nos olhos da sociedade em geral, nos fazendo sentir não pertencentes ao mundo, sem direitos e reconhecimento.
KI: Pesado o assunto. Eu posso falar porque sou até hoje ativista da comunidade, e apesar das discordâncias, hoje elas são debates muito mais internos, do que propriamente fora de nosso nicho. Quase todo país civilizado hoje reconhece o matrimonio gay, até a não identificação com género, foi conquistada recentemente na América, onde no lugar de masculino ou feminino a letra X responde o X da questão! Hoje até os enrustidos, conquistaram o direito de manter sua discrição, pois já vencemos a batalha principal, e também aprendemos a entender a realidade de cada um, e as circunstâncias que nos determinam, essa obrigação de se assumir, já é também passado, o importante mesmo é estar bem com si mesmo. Temos que aceitar o limite, o tempo e as razões de cada um com o mesmo respeito que gostamos que aceitem as nossas.
LE: Até nossa Rainha fez um show recentemente com um X no tapa-olho. Eu não tinha pensado nisso inicialmente. Agora que caiu a ficha!
RA: Sabe que nem eu. Esse X da Madonna era claramente uma antecipação daquilo que estaria por vir.
RA: Sim, mas antes de anteciparmos o futuro, vamos discutir os temas que nos trouxeram até o presente.
Reginaldo servindo mais drinks de calcinha.
KI: Quer minhas botas?
RE: Ai já não dá... perco o equilíbrio facilmente!
LE: Quais temas por exemplo?
RA: Como a sociedade encara uma mulher que nasceu homem, atravessa o procedimento cirúrgico, e depois se torna lésbica?
LE: Acho que eles não entendem isso, pois existe um ponto intrigante nessa conversão, se tenho desejo por mulher, porque preciso ser mulher para me deitar com uma, e não posso fazer isso na condição “natural” que nasci, satisfazendo o desejo meu e da minha parceira?
KI: Você não pode prender desejo apenas na capa do gênero. Às vezes, precisamos primeiro ser o que somos, e nesse caso, sendo uma mulher num corpo de homem, ela jamais conseguiria proporcionar prazer a sua parceira, pois ela não se sentia como era.
Você precisa entender que existe sutilezas que recobrem esse processo todo, da mesma forma que uma mulher, que nasceu num corpo de homem, se sente presa, e precisa se libertar de sua condição, obrigação masculina para poder amar ou transar e ter desejo, seja com homem, com mulher, seja com X!
RE: Você fez a operação?
KI: Não, porque tem as mulheres, que depois da cirurgia se realizam, e existem aqueles que não querem abrir mão do pau, e que conseguem se sentir femininas o suficiente mesmo com um pinto entre as pernas. Eu sou tão mulher que nem meu pinto abala minhas certezas. Mas também não esqueci de como é ser um grande homem! Sou um exemplo de travesti!
RA: Mas então você gosta de sentir o frenesi da penetração?
KI: Eu adoro comer um cuzinho!
RE: Eu como o seu mulher!
KI: O meu não, não gosto de dar a bunda! Você vai comer ou o Raimundo ou o Leo, se eu fosse você eu comeria os dois.
RE: Eu não vou comer ninguém! Sou...
KI: Hetero... ah... só por dinheiro... arranca essa máscara logo e se diverte, senta ai no sofá no meio dos dois. (ela empurra ele pro sofá). Esse papinho já não convence mais nem você mesmo.
Reginaldo mais a vontade, com uma sensação ridícula, percebe a volúpia dos dois homens que o cercam. Ainda querendo escapar.
RE: Pronto gente, agora já posso tirar, ou vocês querem que fique de calcinha a noite toda?
KI: Não, não precisa darling, você já arrasou. Mas devolve a calcinha e não poem mais a cueca.
RE: Eu vou ficar nuzão aqui sozinho?
LE: Somos todos putos, não sei o que você tem de tão especial para não se juntar conosco?
RE: Sinto aqui profunda amizade
Ki: Mentiroso, aceita esse desejo enrustido dentro de você, e não seja fraco, pare de usar a grana como pretexto, garanto que os dois fazem de graça pra você, não vai nem precisar pagar, e fica nesse chororó?
RE: Chega de reprimir o que não consigo mais esconder. (gritando)
Todos batem palmas, e uivam gritos de felicidade. A sala ferve.
Reginaldo se senta no sofá entre os dois, e Raimundo não espera muito para lamber seu pescoço. Leo começa a se masturbar, todos nus, menos a Kitana, que se mantém incredulamente bela com suas botas, sua capa, mostrando as costas para o público ao se levantar para recolocar sua calcinha preta. O clima esquentou, os três se pegando no sofá, Kitana, novamente a postos, grita, “vou preparar uma linha para nós” , e também um drink especial com um líquido mágico que nos faz a todos flutuar feito plumas rosas no calor do verão.
LE: Que mágica é essa? (fazendo-se de cínico)
RA: Merecemos mais do que o pai nosso?
LE: E o Edir Macedo?
RA: Esse prostituto não honra o código da prostituição. Vendeu sua alma pro Diabo, e se suja cada dia mais com fraudes, construções de templos gigantes que não passam na verdade de cassinos disfarçados de igreja.
KI: Verdade, nunca entendi porque proíbem o jogo nesse país se eles permitem a igreja universal funcionar como se fosse encarnação da simples modéstia explícita das igrejas originais, onde as pessoas não eram enfeitiçadas, sequer alimentadas por mentiras brutas, que as emburrecem e não as deixam viver a vida sem a obrigação de ter que doar dinheiro pra Deus, como se Deus precisasse de dinheiro para existir. Imagina, se eu fosse Deus não estaria preocupada com joias e carros de luxo, estaria promovendo orgias pelo mundo e santificando os beatos, aliviando cada ser humano da culpa diante do prazer, dissolvendo esse velho ruído que nos faz sentir o peso do arrependimento cada vez que sentimos um puta orgasmo.
LE: Acho que porque os cassinos iriam trazer concorrência à mafia da fé.
RE: Como assim?
LE: Ao invés de você ficar viciado na palavra de Deus, você terá mais opções de vícios, eu nunca fui, mas imagino que um cassino seja bem mais divertido, tem bar, luzes, e shows ao vivo. Quase uma igreja, cujo Deus é o dinheiro, tem até a hóstia, as moedinhas dos caça níqueis.
RA: Exatamente. Essa tal de religião nos condena, e nos pinta como seres indignos, e se pudessem, nos excomungavam, o que para mim não faria diferença nenhuma. Por isso adoro a ideia de saber que pendurada nas paredes da igreja, as putas do Caravaggio são abençoadas por Deus. Ah, vocês não sabem da última, vou gravar um filme!
KI: De terror ou comédia?
RA: Pornográfico mesmo.
KI: Dá no mesmo. O que vale é fazer bem o papel! Meus parabéns.
RA: É meu primeiro filme, e estou ansioso. O diretor disse que posso escolher meu parceiro.
LE: Pagam bem?
RA: É, mas pagam!
KI: Vai fazer o ativo ou o passivo?
RA: Acho que os dois, depende, se quem estou pensando em convidar aceitar a intimação, acho que só passivo.
LE: Vai me chamar?
KI: Cala boca intrometido, deixa ele falar.
Reginaldo sente a pressão, e encolhe os ombros. Eles se olham profundamente, e o convite tacitamente feito, cria um clima de uma aura sagrada, quase um templo, na kitnet, nesse pequeno gigante lugar.
RA: Voltamos aos assuntos vai, deixa a revelação para depois.
KI: Nada disso, nada mais de papo cabeça aqui, proibido, antes que você tome coragem e convide quem está ai, o nome quase explodindo nos seus lábios!
RA: Re, querido, você faria o filme comigo?
RE: Eu, (fingindo que não sabia que era com ele) ? Eu não posso.
RA: Come on! Sei que você já foi convidado para vários filmes, não entendo essa sua resistência.
RE: Eu sei, e um deles até que pagava muito bem, mas sei lá, tenho esse receio...
KI: Fala!
RE: Minha mãezinha. Ela mora longe, em Natal, mas la já existe televisão, pra quem não sabe. Sempre pensei se por um acaso ou uma divina coincidência, o filme caísse em suas mãos, e ela assistisse. Sabem o que isso implica, profundamente?
RA: Que você está de novo arrumando uma desculpa, como faz com o dinheiro, para não viver o melhor que a vida te proporciona.
KI: E também, se ela ver, que mal faz? Você acha que você nasceu como?
LE: Esse negócio dos pais assistirem a gente transando, como as cameras escondidas nas casas desses playboys, que vigiam tudo. Fui um dia numa casa que tinha camera em todos os lugares possíveis, acho que menos no banheiro, pelo menos não no que usei, se tinha não vi, mas no canto do quarto, tinha uma bem indiscreta, pegando toda cama. Transamos horrores, fizemos o impensável. Mas sai de lá me perguntando, e quem assiste essas gravações, senão os pais do moleque? Será que eles colocaram as cameras por proteção ou por perversão?
Porque essa ideia de ficar assistindo os filhos transando é um pouco liberal demais por meu gosto.
KI: Por debaixo da seda que cobre o luxo, existe rios de podridão nessas famílias endinheiradas. Não que as nossas estejam totalmente absolvidas, mas acho que quanto mais dinheiro e poder se tem, mais você vai ampliando o direito que tem sobre os outros, sem pensar no que eles pensariam, não se importando com a vontade alheia, e dando asas a essa sombra que vai surgindo em você, e aos poucos, o que era uma tímida tara, se torna uma genuína e ativa, constante perversão. Eu não tenho filhos, nem posso, digo, de parto, mas se adotasse um acho que não teria esse fetiche, de assistir o menino transando ao vivo. Talvez uma, ou duas vezes, nada demais, só pra ver se está tudo funcionado direitinho. Será uma nova revolução na educação sexual?
No meu tempo isso era tema de escolinha, mas não ensinava mesmo nada, literalmente.
RA: Mas não era essa a questão!
RE: Exatamente, é totalmente o contrário. Não existe fetiche, minha mãe não quer me ver transando. É no caso do filme parar sem querer nas mãos dela.
RA: Acho que esta se preocupando demais, porque se essa quase impossível situação ocorrer, cabe a ela decidir se vai querer ver você transando ou não. Se ela quiser, provavelmente você nem ficará sabendo, porque não acho que ela ligaria pra te contar sobre sua performance, e se ela não quiser, foda-se. Se livra dessa carga boy?
RE: Eu sou pudico demais. Mas acho que hoje pra mim já me liberei de muito peso.
Reginaldo agarra Raimundo e o beija enlouquecidamente.
FIM DO PRIMEIRO ATO
ATO II
Leo deitado no sofá, já de cueca. Um barulho violento vindo do quarto, Raimundo e Reginaldo, expressando essa compulsão maravilhosa quando encontramos o lugar certo para saciarmos nosso desejo, junto a pessoa ideal. Kitanda inquieta na poltrona, se estende até o prato e prepara mais algumas carreiras de coca.
K: Hey, Leozinho, acorda! Estou sendo vitima do meu próprio tédio. Já estou quase novamente louca. (toma mais um shot de vodka, Leo nem se mexe). Acho que está muito silencioso esse apartamento, aliás, com exceção dessa percussão sexual que nos excita e ao mesmo tempo nos irrita, porque não somos nós que estamos como protagonistas da situação. Vamos colocar uma música, pra ver se a galera dá uma animada.
Kitanda vai até o bar, e aperta play. Living for Love. Madonna. Ela, sem pudores, começa a fazer seu show, sozinha, como se não houvesse público, e o apartamento não fosse um cenário. Leo acorda com a balbúrdia, com uma leve ereção. Olha ao redor, se serve um shot, faz uma linha e levanta como um foguete, pulando para o lado de Kitanda, se pondo aos seus pés, sobre a bota de vinil, quando finalmente a musica acaba, os dois dão risada, e um sonido de um ruido vazio, estática do som, preenche o ar. O som animalesco vindo do quarto cessa. Kitana vai até o aparelho de som, e coloca um tech house, que fica de fundo, oras se sobrepondo aos diálogos, quando o silêncio se instaura, ora se encolhendo, deixando apenas um leve ondear na delimitação do espaço. Os dois dançam um pouco mais, até Kitana se fazendo de exaurida, senta na poltrona, com as pernas cruzadas, e Leo se acomoda no sofá.
K: E ai, esse celular não toca?
LE: Deixei em modo avião, hoje me dei o direito de tirar folga.
KI: Essa vantagem que temos, de escolher quando trabalhar e quando folgar, devia ser um direito a todo e qualquer trabalhador.
LE: Sabe que penso nisso, nas vantagens de viver a vida que vivo. Estou sempre em paz comigo. Ganho o suficiente para me manter, pagar as contas, alimentar meu gato, e me divertir, geralmente não gasto em bebida, porque tem sempre um amigo no bar. E conquistei um ponto que escolho com quero transar. Não falta moleques riquinhos e homens de fino trato.
KI: Desculpa queridinho, mas você não conquistou esse lugar, com esse braço que tem entre as pernas, e esse sorriso no rosto, ele já era e sempre foi seu. Não sei porque a fissura das bichas no tamanho do pênis. Eu gostaria de ter um pênis maior, mas não sei se porque eu gostaria ou porque os outros gostariam mais de mim se meu menino você como o seu.
LE: É, mas sabe que também tem o outro lado. Na maioria das vezes a única coisa que enxergam em você é seu pinto, e nada mais. E eu, na verdade, adoro dar a bunda, no fundo mesmo, sou bem mais passivo, e encontro cada anjo que me paga, eu morrendo de vontade de dar o cú, mas vê se tem um que quer me comer. Nunca, já arrancam as roupas e empinam a bunda, feito esses babuínos que ficam com a rosa exposta o dia inteiro. Aconteceu uma vez só, com esse rapaz que eu disse que me levou para sauna, ficamos enlouquecidos de bala, brincando de mutua masturbação, até que chegou o ponto que o tesao dele foi me comer feito uma vaca. E ainda me levou pra sauna, onde todo mundo sabia quem eu era, sem a menor vergonha de me assumir em público. Nesse dia, esse rapaz me fez sentir especial. Mas normalmente, eu consigo sentir prazer e me divertir com que faço.
KI: Faz pissing?
LE: Então, eu não gosto de engolir, mas já mijei em vários caras. Esse aí era tarado, e gostava mesmo de engolir.
KI: Engolia o mijo todo?
LE: Sem desperdiçar uma gota. Acho louvável, se entregar aos limites do desejo e não ter vergonha de fazer o que quer.
KI: O que mais existe nesse mundo são pessoas frustradas e infelizes, e acho que no fundo, sempre tem algo a ver com sexo. Vivemos nesse país atrasado, por mais que conquistamos nosso direito, digo, um país novo, com vícios coloniais, e colonizado por jesuítas. Imagina, um jesuíta catequizando um índio, e o fazendo rezar? Acho que devia ser ao contrário, o índio que devia catequizar o jesuíta, e o ensinar a não ter vergonha de andar nu. Esse padre Anchieta que começou com esse lance de catequizar, no fundo, apenas para domesticar aquilo que eles não entendiam, e viam como uma gritante ameaça e denuncia da hipocrisia velada de seus costumes europeus. Como poderiam aceitar um homem livre nu, se eles sequer sexo podiam fazer?
LE: É, não podiam, mas o que mais teve nesse mundo é padre que transou com meninos. Abuso na verdade, pois um coroinha, em lavagem cerebral, acaba se tornando um boneco de argila nas mãos desses pederastas da fé. Como um cara desse dorme a noite? Recentemente saiu essa notícia, de mais de três mil casos de abuso de menores nos últimos anos.
KI: Isso sempre ocorreu na igreja, principalmente na católica e seus derivados, que obrigam o celibato. Os protestantes e os luteranos podem casar. Já não sei do anglicanismo, mas sei que inúmeros abusos foram cometidos por um só padre na Inglaterra, que ainda se safou da prisão por questões de saúde. Eu não imagino como uma criança pode crescer com essa mancha... se você tem uns 13, 14 anos, até vai, porque é a idade que começamos a transar.
LE: Mas é proibido, entre 14 e 16, é estupro, até os 18 acho que só abuso.
KI: Aqui no Brasil, meu leãozinho. Sabe que existem países na Europa onde a maioridade é atingida com 14 anos de idade, isso significa que você pode ter 70 anos e se apaixonar por um anjo, e viver com ele todas as delicias de um paraíso particular.
LE: Mas ainda acho cedo demais. Se bem que tem uns novinhos, se eu fosse padre, confesso que talvez não iria resistir, por isso achei melhor ser prostituto. Era ou a igreja, ou o exército, ou as esquinas. Como não gosto de armas, se bem que a ideia de ficar trancando num quarto com dezenas de homens me excitava, achei melhor me prostituir, acho que Deus me deu esse dom. Eu fui só aprendendo a usar. Mas uma criança, de , 6 ,7, 8,9, 10 anos, não consigo admitir como tem gente que consegue atravessar anos de civilização e moral e se permitir a algo assim.
KI: Dizem que eles nascem assim, que é uma condição, uma doença. Mas acho que muitos são por pura perversão mesmo. Gente má, que abusa, e tem o tesao em ver a criança sendo torturada, gemendo, gritando, chorando, isso que lhes dá prazer. O que não conseguem extrair de um adulto, pois se sentem intimidados, ou não estão dispostos a transar de verdade, pois o que os excita é esse terror de dominação. São as lágrimas da infância perdida.
LE: Mas com crianças. Sabe que existe um mercado negro, poderosos que compram menores para serem escravos sexuais. Se isso acontece no nosso país, imagina naqueles onde a lei não atingiu os calcanhares da civilização, e humanos são puros objetos. Tem mães que vendem suas filhas, para as outras não morrerem de fome. Tem cada barbaridade nesse mundo ,que até duvidamos que toda essa beleza é livre e não precisamos segurar lágrimas frente a um pôr do sol.
Raiumundo e Reginaldo entram, de mãos dadas, mas logo se desagarram, e vão, um direto pro sofá, outro direto pro bar, preparar mais alguns drinks.
KI: Finalmente, vejo que perderam uns dois kilos pelo menos, cada um!
RA: Finalmente mesmo!
RE: Estou precisando mesmo emagrecer.
K: Desculpa, eu tive que colocar uma musiquinha pra dar uma animada, e também abafar um pouco a batedeira no colchão. Estava demais, os vizinhos devem ter participado, fala a verdade, não existe nada mais desconcertante do que você está num quarto, ouvindo duas pessoas trepando no outro. Primeiro que se torna impossível dormir, quando isso acontece em casa eu me produzo e vou pra rua, divido o apartamento com uma prima minha, puta também, e ninfomaníaca ainda por cima, ao invés de querer fingir tesao pro cliente gozar rápido, como quase toda puta faz, ela fica aguentando tudo com a maior veracidade possível, e faz questão de prolongar o máximo o orgasmo do cliente, geralmente passa a uma hora, e estica até o limite da carne.
RA: E vocês, já estão cansados? Qual era o papo da vez.
Toca a campainha.
RA: Vocês estão esperando alguém?
KI: Não, só a carruagem!
RE: Deixa que vou ver quem é! (Reginaldo sai, o som aumenta, o silencio dos personagens dominam a cena, em conjunto com a música. Algum tempo depois ele volta com Mike.)
MI: E ai turma! Melhor tarde do que nunca.
RA: Não lembro de ter te chamado.
MI: Qual é Mundinho, nossa intimidade já ultrapassou certas cerimonias. Vim fazer uma visita. Soube que o Leo e a Kit estariam vindo pra ca, já imaginei festa. Já encerrei por hoje também.
RA: Não tem problema, fique à vontade.
Ki: Isso mesmo, como pode ver estão todos semi nus, você pode participar da festa, mas tem se adequar ao ambiente.
Le: Irmaozinho! (de leve da um apertão na bunda dele)
Mike começa a se despir, tira os calçados, a calça jeans, a camisa. Magro, alto, cabelos castanhos, moicano, com alargadores e tatuagens espalhadas pelo corpo.
Mi: Trouxe um presente pra vocês. (Tira do bolso um saco de balas, e um tubo de gotas, LSD)
A festa se anima, a música aumenta, eles enchem os copos, e junto com o drop fazem um brinde. Raimundo e Reginaldo se pegando atrás do bar. Mike senta ao lado de Leo no famoso teste do sofá. Kitana ainda na poltrona, impassível, olha pros dois com desejo e vontade de se meter no meio.
Ki: E ai, me fala, como vão os negócios?
Mi: Vão melhor do que nunca. Já tenho três trabalhando pra mim, contratei mais um essa semana.
LE: Desse jeito vai ficar rico logo, e vai me levar pra Bahamas.
Mi: Você meu gostoso, te levo pra qualquer lugar.
Le: Posso te fazer uma pergunta séria?
Mi: Logico. Manda.
LE: Você não tem medo de ser preso a qualquer momento? Como é isso, eu me pergunto, dormir sem sossego, passar o dia preocupado, se sentindo acuado, paranoico, como se a qualquer instante gorilas invadisse seu quarto e o levassem algemado para alguma prisão, um par de erros, uma pocilga?
Mi: Eu prefiro não ficar encanado nisso. O máximo que posso, claro. Não deixo tanta mercadoria em casa, escondo num ferro velho, tomo cuidado com as chamadas, só atendo quem conheço, vou sempre pra fora de casa, entregar o pacote pro moto boy, só aceito novos contatos de quem confio e trabalho a muito tempo. Mas você tem razão, é uma vida um pouco intensa, em sua maioria dos dias, mas acho que tenho uma queda por essa adrenalina. Sinto que estou indo contra o sistema, que tenho um papel, sou uma ruptura, represento a contra-cultura, presenteio as pessoas e proporciono alegria, são muitas as mensagens de clientes agradecidos, tudo isso vale a pena. E depois, a grana compensa.
Ki: Posso te perguntar quanto ganha? Aceita?
Mi: Claro. (E cheira uma carreira)
Todos levemente bem alterados, a musica aumenta.
LE: E quando alguém morre de overdose, como você se sente?
MI: Como me sinto? Fico triste e ponto. Não é culpa minha, só dei o que me pediram, e ainda recebi por isso. Não posso ser responsável pelo controle dos meus clientes. Se alguém não sabe se controlar e morre, fala, na real, que culpa tenho eu?
KI: Nossa, tao fácil assim?|
MI: É como mantenho minha consciência limpa, não posso carregar cadáveres que não são meus.
LE: Já teve algum cliente que passou dessa?
MI: Alguns, não muitos. Três. Mas que papo meio esquisito. Pra que falar de morte agora que estamos celebrando a vida?
LE: Eu não tenho essa coragem, ou ousadia. Posso perguntar quanto faz no mês?
MI: Poxa amigo, depende, tem mês que uns 10, já cheguei a fazer 30.
LE: Trinta mil reais?
KI: Nossa, até eu vou virar tua sócia desse jeito! Pena que não levo o jeito pra coisa, sou uma péssima mentirosa, qualquer enquadro já ia entregar com os olhos.
LE: Acho que na vida temos que saber e conhecer nossos próprios limites, e saber onde pisamos. Seguir essa tal da intuição. Mas acho que tudo isso seria desnecessário, se legalizassem as drogas. Acabarem com essa hipocrisia ridícula de uma burguesia que fede, faz tudo aquilo que fazemos e pior, e ficam se posando de símbolos da retidão e do decoro. Se soubessem a quantidade de juízes que já atendi, um juiz cheirando pó, não tem ai uma suposta contradição?
E uma taça se quebra.
KI: Viu, foi a voz de Deus!
RE: Deixa que eu limpo os cacos!
Mi: Mas ai irmão, continua.
LE: É um absurdo isso, um juiz que é viciado, condenar alguém por tráfico. Isso simplesmente está errado por natureza. A sociedade deve estar pronta para controlar seus vícios e admitir o que ela de fato é. O álcool está em todas as esquinas, e não é por isso que todas as pessoas bebem, bebe quem quer, cheira quem quer, fode quem quiser. Esse tráfico persistente, essa guerra que nunca acaba, só fere ambos lados, os peões do jogo, porque os coronéis, como dizia nosso artista, ficam atrás da mesa com o cú na mão, e os donos da porra toda, os traficantes que mandam no negócio, longe das favelas, estão entre políticos e poderosos, moram em casas de luxo, andam de helicóptero, almoçam nos melhores restaurantes, e ainda chamam de drogado um junkie que eventualmente cruzam pelo caminho. Ninguém legaliza porque senão a mercadoria vai deixar de valer o que vale. Ganham dez vezes mais quando existe medo e risco. Mantém essa ilusão, ao invés de enfrentar o problema de frente. Se a maconha e o álcool são legalizados, já em países com um senso onde a liberdade vence a hipocrisia, qual a diferença das outras drogas, que são proibidas, são discriminadas, não entendo, isso sem mencionar o cigarro , o álcool mata mais que heroína, ou cocaína, , as pessoas dirigem feito loucas e atropelam umas outras. Acidentes fatais. Existe nesse mundo as liberdades, e para usufruirmos dela, temos que ter no mínimo a consciência de saber o que estamos fazendo, ou arquemos com as consequências, é assim em qualquer e todo lugar do mundo, se você atropela alguém sem querer, não importa, homicídio culposo, dizem, não existe dolo, mas culposo ou doloso, o que importa é que a pessoa está morta. É como tudo na vida, se vai para um clube de tiro, e mata o dono do estabelecimento, porque não soube usar a arma, quando disse que sabia, vai ter consequências. Manter o trafico e prender apenas os peixinhos pequenos não é combater as drogas, é fingir que combate alguma coisa para dar uma resposta a sociedade. Quero ver poderosos atrás das grades, como quando aquele juiz ousou enfrentar uma quadrilha de gigantes, quando acharam um avião cheio de coca na fazenda daquele politico que perdeu a eleição. Acham isso uma simples coincidência? E não deu em nada. Por isso digo, nós os pequenos, devíamos parar esse país, porque sem nós, as engrenagens do sistema não conseguem andar. É de arrepiar, mas isso e muitas outras coisas exigem uma mudança imediata. Políticos corruptos soltos, outros que sequer são processados, andando de jato, usando ternos comprados com o nosso dinheiro. Isso não pode mais acontecer. Alguma coisa tem que ser feita para pararmos esses bandidos. (Se exaltando, continua a falar, dançando conforme a música aumenta, e o êxtase começa lhe fazer soar). Abaixo os poderes, abaixa o lábaro estrelado, prendam e investiguem os políticos. Que vença o retorno da prisão em segunda instancia. Somos prostitutos, mas somos muito mais honestos e valemos muito mais do que esses filhos da puta, corruptos do inferno.
KIT: Calma nene, vou te preparar uma toalha gelada, porque você esta soando demais.
Kitana também levemente tocada pela bala, se levanta andando conforme a música. Leo sobe em cima da mesa e começa a fazer o gogo boy. Raimundo e Reginaldo põem um pano de prato na cabeça, como uma faixa, e começam a dançar na cozinha. A casa começa a virar um pequeno zoológico. Toca a vizinha. Uma velinha com bochechas rosas e casaquinho, blusa e saia florida. Ela está com um poodle rosa no colo.
ZE: OI, sabe, não quero me intrometer....
RA: Desculpa dona Zefrida, vou abaixar o som.
ZE: Imagina meu querido, não se incomode.
RA: Eu sei que está um pouco muito alto.
ZE: Não é isso, eu vi que vocês estavam dando uma festinha, e sabe, desde que meu esposo se foi, me sinto sempre tão sozinha, que pensei... que talvez pudesse me convidar, se você não tiver nenhuma objeção, claro.
RA: A se convidar... a senhora quer participar da s...
RE: Claro dona Zefrida, fique a vontade, é uma honra termos a senhora aqui com a gente.
ZE: Ai meninos, muito obrigado. Posso fazer mais um pedido?
RA: Claro!
SE: Vocês se importariam de eu trazer meu cachorrinho, a Felina? Ela sofre do coração, e eu não posso deixar ela tempo demais sozinha, fico com receio de que algo aconteça com ela.
Os dois se olham ridiculamente. Leo sequer percebe a velinha e continua dançando feito um louco em cima da mesa. Dona Zefrida olha o rapaz e esbugalha os olhos.
RE: Claro, não tem problema nenhum, nós todos adoramos um cachorrinho. Aliás, era tudo o que estava faltando para completar a festa, a cereja do bolo. Fica à vontade. A senhora e o cachorro, digo a Felina.
ZE: Maravilha! (ela solta o poodle no chão) Que festa animada em? Vocês estão bebendo alguma coisa?
RA: Claro, prefere vinho... catuaba na verdade, ou cerveja, ou vodka?
ZE: Ai, sabe que faz tempo que não tomo uma vodka na vida. Aceito uma, dupla!
Os meninos se olham. Capricham na dose e dão pra dona Zefrida, que mata num gole só.
ZE: Ui, essa valeu. Meu deus , já me sinto mais acalorada. Vocês se importam de eu tirar meu casaquinho?
RE: Imagina, fique a vontade.
Os meninos atônitos, o poodle rosa latindo, o som aumentando, Leo dançando enlouquecido, bate como o pé na bandeja, e esparrama uma parte da cocaína pelo chão. Dona Zefrida vai indo até o guarda roupa, e põem seu casaquinho. Volta já meio alegre. Kitanda volta com a toalha de água gelada nas mãos, ao ver Dona Zefrida, da um grito.
RA: Kit, essa aqui é nossa querida vizinha. Dona Zefrida, nós a convidamos para participar da festa.
KI: uau, nossa. Seja bem vinda, Fique a vontade. Aceita uma... (e oferece uma linha de coca pra velha).
ZE: Minha querida moça, é moça né? Está certo? Ou moço?
KI: Moça mesmo, obrigado pelo tom de mocidade!
ZE: O que é exatamente isso que estás a me oferecer?
KI: Cocaína.
Ze: Ah, sei. Droga?
KI: Eu costumo chamar de perfume, mas a senhora pode chamar do jeito que preferir?
ZE: Mas não é muito viciante... digo, não vou ficar viciada?
RA: Está maluca?
Ki: Cala boca. Então, com uma ou duas carrerazinhas só, acho que não vai correr nenhum risco de viciar. Assim imagino eu.
ZE: E o que faz isso, digo, o efeito?
Ki: Da uma animada. Você nunca provou?
ZE: Eu, imagina. Mas na minha idade, chega uma hora que largamos esse pudor que carregamos por uma vida, e dizemos mesmo, foda-se!
Tofos riem.
ZE: Já passei a fase vigorosa da vida. Agora digo, porque não? Ela vai chegar uma hora ou outra?
MI: Quem, a policia?
ZE: Não, a morte!
RA: Não fala isso, imagina, a senhora está mais conservada que um..um.. pepino de capri!
ZE: Ai, sei que é na Itália isso, desculpa, mas sou um pouco surda, conservada feito uma menina de Capri?
RA: Exatamente.
ZE: Obrigado! Será que dá pra aumentar um pouco a música? Como disse, não consigo escutar direito.
RE: Claro. (Aumentando o som)
ZE: Vou experimentar. Pronto. Está na hora mesmo de jogar tudo pro ar e ser feliz. Eu estou tão feliz por estar aqui com vocês.
KI: Vai ficar ainda mais! Toma, segura esse canudo.
ZE: O que faço com isso, assopro?
KI: Não, pelo amor de nossa senhora aparecida. Faz justamente o contrário, enfia ele bem no fundo da sua narina...
ZE: assim?
Ki: Pode enfiar mais um pouquinho, isso, bem la no fundo.
ZE: E agora?
KI: Agora você inspira isso como se fosse o ultimo sopro, digo, inspiração da sua vida!
Dona Zefrida vem e aproxima o canudo da bandeja, e manda o teco que nem uma velha louca. Da um grito!
ZE: Ai, animal!
Enquanto isso seu animalzinho, a Felina, no pé da mesa, lambendo a coca que caiu no chão, até ficar com o focinho branco.
Mike vai até o bar e despeja um pó rosa na garrafa de vodka, e balança, e balança.
Dona Zefrida começa a dançar, levemente, a dança da galinha, batendo as asinhas como se fosse um passarinho, e no passinho, um pra lá, dois pra cá. E vai dançando.
RA: Ela pode fazer isso, a velha parece que já passou bem do tempo e da condição?
RE: Eu não sei, vamos descobrir hoje, mas se eu fosse ela, faria a mesma coisa.
RA: Há, desse jeito você não chega nem na metade da idade dela.
RE: Vou chegar, e você chega junto comigo. E vamos morrer assim, dando tiros envoltos de plumas e flamingos.
RA: A veia tá doida!
ZE: Ei, meninos, posso tomar mais uma dose de vodka?
RE: Claro. (que não percebeu o movimento do Mike, serve uma dose caprichada) Está bom assim ou quer mais?
ZE: Assim está perfeito bonitão! (passando a mão em seus peitos, o deixando perplexo)
O cachorro começa a latir cada vez mais alto, e correr pela casa. Dona Zefrida vira de uma vez.
ZE: Ai ai ai! Isso que é vida! Vocês se importam de eu ficar assim, mais a vontade?
RA: A casa e sua!
Dona Zefrida tira a blusa, e fica de sutiã! Olha com sangue nos olhos para o Leo dançando em cima da mesa, e se achega.
ZE: Me ajuda aqui seu moço!
Leo, que pela primeira vez percebe a existência da pessoa, se assusta, mas mantém a classe, e ajuda Dona Zefrida a subir em cima da mesa. Onde os dois assumem o posto de gogo dancers. Dona Zefrida cada vez mais enlouquecida. Kitana chocada. Os meninos riem sem dar vasão a risada.
Ki: Onde foi parar o safado do Mike?
RA: Deve estar no quarto se masturbando e cheirando pó. Ele só faz isso da vida. Fica dias assim. Entre um atendimento e outro.
KI: Chama ele, ele não pode perder essa cena!
Dona Zefrida começa a se esfregar no Leo. Enlouquecida. Tira o sutiã. O cachorro começa a correr e a latir feito um cão selvagem. Subitamente vai até as botas de Kitanda, que saiu de trás do sofá, e avança nela, mordendo suas botas.
KI: Ai sua cadela desgraçada!
RE: Meu deus, a Felina está atacada.
RA: Eu sempre tive medo de cadelas, ainda mais rosa, não são confiáveis! Rosa é cor de flamingo.
RE: Faz alguma coisa.
KI: Arranquem essa cadela de mim!
Kitana dá um chute com a perna, e Felina é arremessada por outro lado da sala, batendo na parede, e caindo com as quatro patas pra cima, convulsionando.
Ki: Gente do céu, que cadela maluca! Ela estava com o focinho todo branco.
Eles reparam na coca espalhada no chão.
RA: Gente, a cachorra cheirou o pó.
RE: Não fala isso, como assim.
KI: Olha lá, o pó todo no pé da mesa, a cachorra com focinho branco, histérica, deve estar tendo uma overdose.
Mike entra em cena, suado e frenético, vai até o bar.
MI: Alguém aceita mais uma drink do inferno? MD com vodka!
RE: Você pôs MD ai?
MI: O saco todo.
RE: Jesus! Dona Zefrida!
RA: O que foi?
RE: Eu servi um copo cheio, ela matou num gole.
Dona Zefrida começa a suar, e a dançar feito uma bacante enlouquecida. Atira os sapatos no público. Começa a rebolar, e o Leo gostando do show, não para de atiçar a velha. Ela se agacha, de costas, e começa a rebolar no volume da sua cueca. Dá um grito.
ZE: Ai, ai ai, meu Deus. Estou me sentindo esquisita. Meio frita!
E louca, ela começa a girar e a gritar em cima da mesa. Kitanda vai até a cachorra e a pega no colo. Ela está tremendo. Vai até a dona Zefrida.
Ki: Dona Zerlinda
RA: Zefrida!
KI: Isso, Dona Zefrida, sua cachorra não está passando muito bem, olha o estado dela.
RA: Acho que dona e animal estão quase no mesmo estado!
RE: O que fazer?
Dona Zefrida pega a cachorra, e começa a dançar com ela, ninando como se fosse um bebe! Mike toma mais um shot, e resolve tirar a roupa. Nu, começa a entrar no rítmo da festa!
MI: Chame os bombeiros?
RA: Não tem nenhum incêndio aqui.
RE: Por enquanto!
Kit: Chame o médico porra! Liga pra emergência!
Reginaldo e Raimundo vão para o bar, onde está o telefone e ligam pra emergência.
RA: Alo, por favor, dá pra mandar uma ambulância aqui. Como? A Felina, a cachorra está tendo uma overdose. Como assim, veterinário, não existe veterinário 24h. Precisamos de um médico.
De repente, Dona Zefrida explode.
ZE: Essa vida é pra ser vivida em liberdade. Eu quero liberdade. Liberdade! Esqueçam seus pudores, mandem a merdas seus amores, casem e se separem, não encalhem feito eu, uma pobre senhora, enlouquecida. Mande a merda o presidente, o juiz, as leis de condução Auto motiva, passem no sinal vermelho, encham a cara enquanto podem, cheirem esse tal de “ina” e trepem feito cadelas enlouquecidas. Lambam os pintos, e os caralhos enrijecidos. Gozem, gozem, gozem feito animais. Ai meu Deus , que maravilha. ( Tira a peruca e atira pro palco). Não tenham medo de mostrar suas vergonhas, não aceitem não como resposta, enfrentem seus medos, voem feito pomba que gira, gira, e gira feito um carrossel, fiquem pelados, se mudem de país, aprendam outras línguas, metam as línguas em outros buracos, pisem num palco, confie em estranhos, transforme sua casa num teatro, gritem, gritem, mande seus maridos tomarem no cú, eles que lavem a louça, nós não somos empregadas, não, não somos vacas feitas pra parir, nós somos mulheres, as mães do mundo, nós somos as donas da vida. Tudo que pariu, fomos nós, puta que pariu, eu estou enlouquecendo. Dancem, dancem, e sejam crianças, brinquem de pega pega, de esconde-esconde, abracem o mar, não se esqueçam, de amar, de amar o mundo e sua poesia, sua beleza infinita, e morram, morram de felicidade. Aiiii ai ai.
Dona Zefrida cai no chão e começa a espasmar.
Kit: A velha morreu. Não, não morreu, está tendo um ataque. Cardíaco! Esta sorrindo pelo menos. Chamem a porra desse médico logo?
RA: Senhor, a senhora... ela veio nos visitar, está estrebuchando no chão, igual a cachorra. Sim, é isso... agora é uma pessoa, claro, viva, ainda, a Dona Zelinda, dona da cadela Felina.
Enquanto isso Mike e Leo começam um show a parte, se pegando em cima da mesa.
Até que Mike desce, Leo o empurra, e o coloca de quatro. A cachorra espasmando, a velha convulsionando, e os dois começam a trepar em cima da mesa.
Ki: Isso é uma barbaridade!
Escutam o barulho de uma sirene. Os médicos entram. Trazem o desfibrilador. Olham ao redor. Pasmos, um cuidando da Dona Zelinda, o outro da cachorra, Felina. Fazendo massagens cardíacas.
Finalmente, dona Zefrida, acorda, se levanta, histérica e enlouquecida. Os médicos tentam contê-la, mas impossível. Ela vai ate a garrafa de vodka e bebe do gargalo. Vai até o medico que está cuidando de sua cachorra, e arranca o animal de suas mãos. Totalmente enlouquecida vai até o sofá. Os médicos se aproximam, ela berra.
ZE: Não toquem em mim. Eu-ta-ná-siai! Escolho morrer com minha Felina no colo. Minha única e melhor amiga. Desejo que todos desfrutem a vida, como eu não soube desfrutar. Si divorciem, pois eu não tive a coragem de me divorciar. Se beijem, se encostem mais, fiquem mais próximos um dos outros, esqueçam esse lance de julgar as pessoas pelas aparências. Agradeçam sempre por tudo, por cada dia. Eu não tive a coragem de ser feliz. Mas hoje, tenho a coragem para morrer vibrando de felicidade. Sejam felizes. Acreditem no amor, na bondade humana, e nos verdadeiros amigos, e nos deliciosos drinks que descobri hoje aqui na casa desses belíssimos anfitriões. Ah, e principalmente, na Liberdade. Obrigada meninos. E dancem, dancem, dancem até morrer.
E morre, junto com o poodle rosa, a sua única companhia, e melhor amiga, Felina.
Todos parados. A musica aumenta. A cortina começa a descer lentamente.
FIM
dedicado o mais medíocre dos atores, querido prostituto Reynaldo!
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