segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

DA MÃE

Era mais que meia noite, quando a mãe acordava de seu profundo sono, e como que enclausurada dentro de si, assistia um próprio espetáculo de um momento solitário e angustiante de desespero sem entendimento, de sensação sem motivo, de algo inalcançado pela razão, porem suficientemente real para desassossegar seu corpo naquela cama, agora fria e mau quista, de pedra, ardida em fel, e traiçoeira ao longo dos lençóis. O medo destilava seu éter entre as paredes do quarto, que a espremiam sem parecer, e aos poucos sugava o ar viciado e infecto que transbordava dentro do pequeno quarto. Estava sobressaltada e ao mesmo tempo sentia que soava frio, já que o tecido em baixo também estava encharcado, junto a fronha de seu travesseiro empapado das conseqüências de seu estado febril. A ausência do pai talvez lhe importunava no seio da alma, mas acostumada estava a solidão e ao árduo empenhar diário de se manter em segredo consigo mesma. Não teria motivos para se apavorar a essa altura do jogo, tudo estava mais claro do que nunca e em seus olhos acendia a certeza de se bastarem sozinhos no escuro. Não precisaria de ninguém mais, nem dos pais mortos, nem do bebe recém abortado, nem do pai. Tudo o que precisava existia bem ali, ao seu alcance, dentro daquela pequena casa escondida num ponto desse mapa disfarçado de mundo. Suas mãos, e seus filhos, que dormiam ao quarto ao lado. Alem dessas paredes era ficção que não importava, e na verdade, funcionaria unicamente como instrumentos dispersos, espalhados pela vida, para que conseguisse manter o que já de fato possuía. Não refletia muito além dos motivos pré-existentes, e nada queria de novo, nada a mais deveria interferir no modelo ideal organizado ao longo dos acasos e resultado de uma equação que se pensada em produto diverso se daria. Não, não teria porque se amedrontar agora, o pior já tinha passado, e o remorso de não haver sido o suficiente para aquela mãe defunta não corroia mais seus dias com ácido e veneno. Sua carne já estava retalhada por lagrimas incontáveis, que como água escorrendo em pedra, trazia a erosão para sua pele, vincando cada fossa de sua face envelhecida. Jovem era, porem jovem havia sido. Seu rosto hoje misturava o rosto de duas mulheres, uma do amanha, vinda precocemente do futuro, e outra do ontem, para sempre ancorada e petrificada no passado. Seus dias eram um enrejicimento completo, uma ancora impelia movimentos bruscos e secos, o que a adequava perfeitamente para o modelo padrão dessa rotina criada, dessa vida sem ambição, dessa resignação absoluta. Não haveria de olhar para trás, de frente o bastante para arrancar essa máscara de fortuita culpa dissimulada, pretexto para atrasar o que estaria naturalmente por vir, não haveria de entender que nada poderia ter sido feito alem do que foi feito. Sua mãe estava morta, e disso nada mais se extrairia. Não houve acidente, houve fato. Não existiu culpa, e sim desculpa. Nada mais poderia ser feito. O impressionante da morte é o absoluto egoísmo que pode fustigar e evidenciar através do sofrimento dos vivos, que fazem questão de atraírem para si funestos resultados quando insistem em sofrer numa proporção maior do que a própria vida, como se pudéssemos deixar de enterrar nossos mortos, como se pudéssemos nos condenar a existir para sempre. A força de uma ausência existe suprema quanto mais notada, e mais ausente se torna a presença dessa falta incontestavelmente presente, desse impossível absoluto, quase que afrodisíaco êxtase de se morrer junto todos os dias, estando vivo da maneira que se concebe estar vivo, da forma que se sabe o que isso significa, até o limite de sentir o que de fato é viver, do código criado para decifrar o que interpreta-se como vida, e da certeza que isso tudo de fato existe, e não é a morte, sendo esta algo diverso, que em tese, também existe, com a diferença de que nunca ninguém morreu antes para se saber se existe qualquer coisa além de vida! Os lençóis continuavam ensopados, e junto a sua respiração penosa e densa, o barulho da chuva apedrejava ainda mais seus ouvidos, martelando as telhas sem perdão, insistindo em demonstrar que a vida chovia, e que esta de fato era um temporal. O inferno deveria estar lá fora, mas será que o diabo já não haveria de estar dentro da casa?

Lentamente as imagens do sonho voltavam em sua memória, e se apoiavam distantes nos traumas mais reais que nos acompanham pelo resto da vida. Levava as mãos na cabeça, e as massageava, como se esse gesto fosse trazer alguma forma de alivio a essa agonia atroz revelada no meio de uma madrugada de tempestade, imposta pelas trevas da noite que se faria infinita naquele específico lapso temporal.

Sonho, pesadelo, realidade, os conceitos eram muito tênues, diluídos em sua afetada percepção naquele momento. Qual a fronteira que não seja subjetiva para segregar esses poderosos monstros?

Qual teoria permitiria que se fosse criado um nível aceitável para se classificar as coisas como sendo diferentes entre si? Como sendo melhores se sonho, ou piores se pesadelo, ou ambos se reais? Qual pesadelo não comportaria uma realidade, e não dialogaria com ela de forma mais cruel e dilacerante que o próprio bom dia de um marido bestial, podendo inclusive interferir o suficiente na sucessão de fatos que muito são tidos como extremamente reais? De que forma um sonho se difere do real, se estamos sonhando vivos, pois já nascemos de olhos fechados, nascemos mordendo a terra? A mãe ainda ardia em febre, e delirava aos poucos, sem água, sem fria água para aplacar o fogo vil que acendia suas pálpebras em chamas, e lhe conduziria para os escombros finais de seu insuportável mundo. Maldito passado que insistia em não passar nunca, que pela febre combustava em sua noite mau dormida, que pelo sono atravessava os bloqueios de suas artificiosas defesas, malgrado os protetores anjos que não a acolhiam quando sob o fado baixava os infringíveis olhos da treva.


A madeira da cozinha reluzia, peroba ou nogueira, reluzia opaca, mais pelo esforço da cera, do trabalho constante de lustrar, e limpar, e varrer, e depois novamente limpar, e muito sujar, todos os dias um pouco sujar, para limpar de novo, e varrer, com vassouras endiabradas esquecidas em área de serviço ausente, junto a copos e talheres e facas, espalhados, servidos ao longo da mesa de madeira reluzente; luz que invadia a cozinha, certa fobia de se estar confinado, preso em uma espera que não termina, que não acaba antes de se importunar com todas as ansiedades cabíveis numa pequena cozinha. Também tinha café, negro, como os cabelos de Maria que balançavam, que reluziam, mais que a madeira, mais que luz fria do dia, onde não se sabia se manha ou tarde, já que algo dilata-se no tempo dos sonhos, nos momentos que estamos acordados numa cozinha pendurada em algum lugar do passado, uma cozinha no inferno, ou numa casa abandonada qualquer, numa cova, ou até mesmo, uma cozinha no cemitério, uma cozinha para os mortos. O filho ainda não tinha, mas tinha barriga, tinha cabelos negros cumpridos e barriga, linda, meiga, cândida e pequenina Maria. O café para o marido passava, que da hora passava, e seus pés já balançavam, pois má sensação lhe aturdia, algo que enrosca-se no pescoço, como quando travamos o maxilar, e jura-se que o estamos quebrando com pressão e força, e de súbito acordamos com os dentes cerrados. Faltava-lhe ar, talvez não era mais dia, e sim, tarde bem após o entardecer, e luz não existia, nada alem de treva para alem da janela. O café preto esfriava, e dos seus olhos uma lágrima escorria. Assim esperava pobre Maria, sem muito do seu esposo conhecer ou esperar, já que grávida a pouco se fazia, e casar as pressas era tudo o que melhoraria sua situação. Casada, sozinha, ansiosa e com vontade de beber mais café. Frisava muito esse café, talvez por ser um motivo, ou um pretexto. Uns bebem café, até o cheiro do café forte presente se sentia, outros água ardente, outros ainda bebem veneno no fim do dia, ou até mesmo urina.


Nada se bebia, e a sua garganta estava seca, árida de vida e voz, emudecida de vontade de se mexer. Com uma mão apoiava-se no colchão, e um esforço extremo fazia para se levantar, infelizmente seus membros estremeciam, e numa queda ela voltava a deitar-se. A temperatura estava alem do suportável, seu sono a tinha exaurido. A tempestade continuava gritar implacável fora daquela singela cela disfarçada de casa, e os corvos insistiam em declamar os versos do desespero humano, petrificado por gerações intermináveis nessa eterna busca de se justificar a cada nascer do sol, a cada nota dada por um vento que sopra de longe uma poesia erudita por demais à sensibilidade por demais racional. Sua fraqueza era percebida em cada uma de suas células enfastiadas e engolidas pela própria metamorfose de se existir ao longo de uma continuidade que muda, que transforma, que pede pelo novo numa geladeira de criações congeladas e possibilidades esfriadas para sempre. A febre tenderia aumentar, e conforme sua degradação moral e sensação de insignificância penetrasse em sua percepção, mais estaria condenada a não abandonar seus medos, e não suportar o mínimo de interferência em tudo aquilo que já tinha estabelecido como normal, como aceitável, como digno. A ignorância lhe faria escrava dos próprios valores, e massacraria sua paz como as mandíbulas de um lobo faminto beijariam a pele de um gorduroso carneiro, o símbolo do sacrifício, o antagonista da vida colorida pelo real e profundo significado da liberdade. Os seus dias de dependência macabra haviam passado, os dias em que submissa a um marido alcoólatra lhe retiravam a autonomia de expressão e poder de significar sua própria vida, mas será que não fora substituída por uma outra dependência tão mortífera quanto, será que o que elegemos como absoluto não nos pode devorar na primeira oportunidade de prova? A vida haveria de lhe testar no caminho em busca da água, da partida de seu deserto rumo ao oásis daquela cozinha, a mesma cozinha dos sonhos, onde sua febre poderia ser atenuada, ou imposta fatalmente para o resto de seus dias. Não mais dependia daquele marido que abandonara o lar, havia contornado o poço com o próprio trabalho, afinal, a independência do outro é mais do que um alivio para qualquer câncer moral, devastador de auto-estima, aniquilador de sonhos. No fundo por mais que se atire aos ventos o quanto deve se lutar por ela, aquele que as rédeas na mao segura, conduz todp seu desejo para manter a carruagem exatamente no mesmo lugar, atolada no charco de seus “podres poderes” e mesquinhos domínios, já que assim, através do controle indigno e manutenção dos limites alheios, aplaca-se a própria incapacidade de existir sozinho, e se bastar sem a necessidade de manter a fogueira do ego alimentada pelas lagrimas do alheio, que infeliz, sustentará em sua vida a sensação de significado, advindo de uma subjetiva escravização do pobre que ainda tem-se como ente querido e amado, num amor sem limites, sem condições, um amor incondicional repleto de exigências e entraves, mas que ressoa protegido pelo ar de uma liberalidade solidária e absolutamente desinteressada. Sim, Maria havia se livrado de um marido, mas será que com ele também se foram as algemas?


Noite de treva,
Intumescida pelo charco de teus olhos,
Noite singela,
Vasta pelo medo do abismo
Do piso sem assoalho,
Do falar sem som,
Emudecido pelo nada que significa
Venha arrebatar dessa vida
O resto de dignidade,
Que sem alma petrifica,
A ultima possibilidade,
De uma felicidade merecida!!


Assim mergulhava a mãe em seus próprios calafrios, e ainda sem se retirar da cama, se via ofegante e perturbada pelas imagens de alucinações de um pesadelo vivo, de uma morte sem vida. Assim as almas dos anjos condenados voltariam para reconduzir ao inferno um ingênuo que julgava do martírio ter escapado, e da travessia sem madeira de cruz, sem calvário explicito, sem chagas e moscas que lhe zumbiam ao redor da carne, desfigurada pelo estupro da própria moral, e das mentiras civilizadas convidadas por ela, ter desviado.


E os demônios do interior lhe zombavam a cada instante noite adentro.


Demônio de pedra, pelo tempo cativado,
Em olhos de Fedra alimentado,
Olhos de Fedra com cores de Frida
Recobre teus sentidos, e revelado,
Disforme em amor desfigurado,
Em ódio semeado,
Busque teu fim ,em forma aclamado,
E restitua o movimento,
Em teus membros engessados!
Ó, clamor de vozes noturnas,
Sinfonia macabra,
Se faça presente, e do intimo
Desse infeliz sorridente,
Se transforme, e em parto indesejado,
Não se mantenha apartado,
Revelando face transluzente,
No canto esquerdo do espelho
Em notívago reflexo,
Que da alma o corpo se faz ausente,
Em felicidade sem sabor,
Para sempre no externo cume,
Reinar absoluto,
De luto sincero,
Demônio do interior!



E a chuva ainda caia lá fora...

Nenhum comentário:

Postar um comentário