terça-feira, 1 de março de 2022

O JARDIM FANTASMA ( continuação)

Era algo entre o clima e a superfície de segredos que misturam na névoa de uma paisagem aparentemente bucólica, silenciosa e inquieta. Eu não sabia se devia mesmo estar ali, mas essa inquietude certamente comprometia meu estado interior, me parecendo mais uma projeção dos meus anseios, do que propriamente uma razão secreta que tenha um propósito específico. Pensei, será essa onda de desaparecimento, onde cobrem as árvores e os penedos, as rochas amolecidas pela miopia de olhos cuja cor já consegui esquecer. Trazia um espelho, esse de pequeno luxo, onde as marmóreas pérolas, davam a seu possuidor uma tênue, porém fantástica sensação de requinte. Resolvi abri-lo, não para me enxergar, mas para descobrir o que existia dentro dos meus olhos, esse algo que está além da cor e mora onde ser humano ordinário não toca, ou porque não se percebe, ou porque não consegue mesmo ver. Cegos tem esse direito, mas não cegos adivinhos, cegos que olham na escuridão e descobrem as tochas por onde os rastros fantasmagóricos de uma maldição passaram sem deixarem-se apagar. A névoa aumentava fora, a medida que eu procurava dentro, esse olhar de cor indefinida, quase em preto e branco, como se tivessem sequestrado a cor do meu olhar. Acho que isso nos traz a vida, vivida as últimas consequências, nos apagam os olhos. Imagino como somos vistos por alguém, que sequer nos ver, imagino com é ser visto por todos, que também continuam não nos vendo, pois mostramos apenas aquilo que intencionamos mostrar, e nos abrigos do olhar, da maquiagem posta sobre a iris disfarçamos uma miríade de sensações e sentimentos não muito honrosos. A inveja por exemplo, diferente da felicidade ou da alegria, essa sempre posta sobre a face, mesmo quando nascido do comentário ou do confrontamento mais patético, nasce do ridículo, do pretexto ridículo entre nós apenas para demonstrar essa felicidade crível e sustentada por um sorriso idiota. A alegria sim, está é mais leve, já que a felicidade verdadeira dispensa o ridículo, até mesmo o sorriso, como um sábio dispensa seu ego para explanar sua sabedoria, ou mesmo para silenciá-la e guardá-la só pra si, para se retroalimentar de si mesmo enquanto medita sobre todas as hipóteses, todas as contradições, todas as possíveis e impossíveis variáveis, o que não vejo muita utilidade, pois sabedoria não compartilhada é como uma gruta celeste despida de anjos. Mas repensando sobre a leveza alegre que faz com que nossa face exprima espontaneamente um sorriso quase tímido, as vezes empapuçado de uma gargalhada exibida, as vezes melindroso, as vezes ineficaz, as vezes mudo, as vezes sombrio, as vezes reprimido. Pergunto ao espelho que me faz chorar, se essa alegria reprimida não seria uma espécie de lágrima, que nos transpassa a carne do olhar, e nos absorve em uma expressão, principalmente diante de um espelho, onde todo mistério, se põem a mostra, no evidente de uma perceção que espalha uma certa dose de sofrimento, muitas vezes relacionando a algo que nos inflige a memória que nos sequestra. Onde estaria eu agora para esquecer? Se revelasse de pronto os gramados húmidos que me cercam, os cedros se escondendo em sua maestria imóvel, tocados por esse rarefeito que qualquer folha arrasta, preenche, modifica, o ar que dá forma ao vento, a inspiração que faz com que o imóvel se mobilize, para chacoalhar pássaros e morcegos, vaga-lumes, e varejeiras, espíritos e caudalosas esperanças, desejos crescidos e talvez realizados, coberto por décadas, semeados pelas mãos daquele que um dia essa majestade verde plantou. É verdade, sempre dizem que temos que fazer três coisas antes de morrer. Acho isso tão estúpido, com tantas coisas para se fazer, passar uma vida fazendo apenas três coisas é um acúmulo de desperdiço, não acham? Não, não pensei em drogas, sexo, e rock n roll , está certo? É assim que se escreve, rock? Sou velha demais para me lembrar se cheguei a escrever um livro, a plantar uma árvore e, o que mais mesmo...a escutar rock. Sempre tenho uma discreta falha de memória que me obriga a carregar esse espelho, para assim nunca esquecer de quem sou. Minha avó já dizia, sempre olhe no espelho, caso se esqueça de quem você é! Infelizmente ela não diz mais. As vezes sinto esses cutâneos malabarismos da paisagem como algo de sobrenatural, se bem que no fundo, nesse fundo onde tudo se revolve, e não resolve, apesar do turbilhão de efervescências que nos conduz a uma gastrite inevitável, ou uma sensação de falsa gravidez, a gravidez fantasma, as pontadas no útero que um dia carregou a possibilidade da vida, e hoje apenas como um museu, carrega a cova de um passado repleto de erros, de ausências, de culpas, de vazio, de um pingo de felicidade. Porque não deixamos de sentir isso a partir de uma certa idade? Talvez, não sei, não sou escolarizada a esse nível, mas pressinto que tem algo de comum em tudo isso, digo , na sensação que nos soterra diante da magnitude de um destino que se encostou perto do final. Acabamos de uma certa forma, se por mecanismo ou por inanição, a relembrar mais daquilo que deixamos de fazer, ao invés de nos contentarmos com aquilo que fizemos. É como se um tapa ficasse muito mais talhado nessa pele memorável, do que um beijo, um carinho, um abraço. Mas de qualquer forma, ainda pelo menos não preciso utilizar mapas para saber onde estou, isso seria certamente uma agravante de minha irremissível condição. Não se lembrar de quem é, um espelho pode ser quase sempre confiável, mas não saber onde está, é uma impotência tamanha que não nos permite mais distinguir entre os vivos e os mortos. Não digo na padaria ou no salão de beleza, uma se sente com o cheiro do pão na chapa, outra com a acetona do esmalte, mas entre a vida e a morte, não imagino como possa ser possível, distinguir uma da outra pelo cheiro, qual é o cheiro da morte? Ainda não me recordo de ter morrido, ou talvez já até isso esqueci, por ser um pressuposto da morte esquecer ou abster-se da vida. Se ao menos tivesse alguém que pudesse perguntar: Ei, você, estou viva? O problema é perguntar para uma pessoa morta, há tantos tipos desse aí nessa nossa suposta modernidade. Vim de uma época clássica, onde morto era morto e vivo era vivo. Entre outras certezas generosas demais para eu aqui me detalhar sem ofuscar o gênero comum da vida e da morte, pelo menos em português. São ambas femininas, apesar que sempre a imaginei com um traje branco, um homem, um cavalheiro, um campeão, com sorriso do tamanho das pérolas mais lustrosas desse mundo, com chapéu coco, e com uma bota, essas com esporas. Um revolver de cano grosso, e um olhar cuja cor permanece mais estonteante do que o brilho das estrelas, um azul de fazer inveja aos mares mais puros do encanto de nossa credulidade. Há, me recordo, tudo isso começou quando pensei em lembrar em discutir, diante do espelho, a palavra que tanto faz os corações tremerem, como se fosse um demônio a ser combatido e exterminado, ou apenas uma crença construída em cima de uma sociedade onde notória desigualdade social se faz premir como gotas numa forte tempestade, quando você, desprevenida, é pega sem guarda-chuvas, e num vestido de seda branca. Imaginem a vergonha. Talvez isso tenha alguma relação com a inveja, a vergonha de sentir inveja. Mas inveja se sente com a cabeça, ou com a alma, ou existe uma diferença, entre inveja racional, e inveja transcendental. Como invejar, não é melhor trocar a palavra por apreço? Eu atesto que na minha época inocente o apreço por algo, ou a admiração e fascínio por uma beleza maior, ou um dom incalculável, um virtuosismo magnífico num magnífico violinista, libertávamos-nos a todas, e saímos preenchida por esse milagre de viver a experiencia dentro através do outro que vive fora. Mas talvez isso seja coisa mais para homens, esses que disputam contra si mesmo, ou contra os outros, para se afirmarem perante si mesmos. Esses homens que passam uma vida em despropósito, sem razão, sem amor. Temos que aprender a nos maravilhar e admirar o admirável, e não consagrarmos a existência como um ringue. O único ringue é a cova, o túmulo, que antes de ser cavado com as pás que nos aterram, vão sendo erguidas dentro de nós, através de um processo exaustivo, de como mesmo posso tentar dizer isso, é, exatamente, essa ferrugem que preenche o cansaço, isso mesmo, oxidação. Engraçado, o mesmo oxigénio que nos respira, que nos faz viver, é aquele que se rebela, e nos mata. Essas contradições da vida, de dentro, pois como digo, primeiro nos sepultamos em nosso próprio egoísmo, ou nos pensamentos, fruto de um amadurecimento tardio, quando podre nos sentimos sem equivocarmo-nos. Essa permanente respiração, nos acostuma com a mais próxima ilusão de liberdade que ainda nos resta nos dia de hoje, ninguém jamais respirará por nós, apesar de sermos sufocados, isso não é respirar, e sim tortuosamente se permitir o próprio sequestro, quando nos deixamos de nos lembrar não apenas de quem somos, mas do que estamos fazendo, a vida, não a morte, vem com esse plástico, por trás, na surdina do segundo, e nos adverte com esse mata-leão, esse golpe, esse sufoco, esse atravessar um rio taludo debaixo d´água, como se o próprio folego somente se tornasse possível quando acreditamos nesse impossível folego, e tudo se suspende, a névoa dos cedros, a grama dos mortos, o cheiro de sereno no ar, a humidade sobre os pés, humildade quis dizer, mas não tive coragem, acho que temos que nos abaixar em algum momento da vida e a recolhermos para perto de nosso peito, ou sofreremos de algum ataque fulminante, como esse espaço vazio que descarta, assolapa a inspiração. A mola condutora do maestro. Respiramos para viver, inspirando-se, e expiramos para continuar vivendo, inspirados. Acho que esse ponto faz toda diferença, esse trafegar entre si mesmo, esse aproximar de seus próprios trincos, essa dúvida, se o trinco é na minha face ou na face vítrea do espelho. Já não sei, tanto tempo olhando para mim para lembrar de mim mesma, que chego a pensar que imprimimos uma mesma imagem sobre algo que deveria atualizar a impressão, ou no mínimo, ser verdadeiro, pois essa é sua nobre função, ou propriamente, consequência, de revelar o que está bem diante de nós e não conseguimos enxergar. Eu vejo o trinco, e faustosamente prefiro continuar acreditando que o trinco é do espelho. Espalho algumas migalhas para os pombos, que se divertem mais que seres humanos miseráveis, nas esquinas desequilibradas do mundo, com uma pedra demolidora de condições, quando começamos a nos esquecer, de quem fomos, de quem somos, de quem continuamos a ser, quando depois dos pombos e das migalhas, que nos abraçam quase como uma invejosa alegria, essa que hoje se institui entre os combates terrenos, esses lobos de Wall street, é isso, street... lembro que me esqueci de ler alguma importância essencial com street, ou por descuido, ou por relapso mesmo, ou por ter tantas outras coisas para me esquecer, que a primeira coisa que devo fazer, a partir de agora, é lembrar de mim mesma. É, acho que o que procuro quando olho além do olhar, nesse abismo profundo condição humana de cada ser vivo que vive e morre, que ri e chora, que ama e... odeia, é essa segurança que me falta, quando sempre insegura mulher, me equivoquei nos amantes que me possuíram, nas taças que trinquei, no amor que sempre idealizei. Somente agora reparo, na lápide mais próxima, o meu nome escrito e abreviado, os anos que nasci... e, santo Deus, que dia é hoje? Em que anos estamos? Na próxima visita anotar mentalmente, “não se esqueça de trazer um calendário”. Ella, a velha senhora, caminhava em seus pensamentos lepidamente feito uma flor com asas que tem medo profundo de abelhas. Seu mel, dos seus pensamentos, se diluía conforme sua impossibilidade de negar a realidade, o que seus olhos viam, mas sua miopia não lhe deixava enxergar, o enxerto, o epitáfio de sua própria morte. Não era a primeira vez que ali vinha, vagando sobre os trilhos remotos de corredores em muros de eras e labirintos invadidos por caos, e pequenos inofensivos detalhes, que mais lhe apareciam como assombração. O tecido importado de um estrangeiro que não assume sua identidade, ou ao menos, o tecelão de seu país, os postes apagados, que lhe confundiam a memória, quando se lembrava de velas acesas em cima de um mortuário e silencioso leito, quando confundia a luz natural com a luz artificial, essas inerentes a coisas frias fabricadas pelo homem, quando ela sempre antes de acordar, brindava o sol, amanhecendo a cada manhã, que lhe distinguia de suas vizinhas, que agradeciam quando a noite chegava, e escurecia a fadiga do dia, possibilitando a imersão num mundo de sonhos. É verdade, ela não estava mais sonhando, e sempre ia e voltava para o mesmo lugar, porém se esquecia de lembrar daquilo que naturalmente nos habituamos a esquecer para poder viver, a morte. Essa mesma morte que nasce connosco, e nos empurra pesadelo abaixo, mesmo no ápice da felicidade, ela não deixa de estar oculta em alguma sombra que a luz não alcançou tocar. A morte que nos subtrai a vida, que nos cria a noção de finitude, que nos semeia o arrependimento, pois quando confrontamos nossas escolhas com o tempo que não volta jamais, percebemos que talvez nós mesmos, antes de morrer, vivemos varias mortes na vida, quando abrimos mão de todo o resto em prol de um único só, instante, momento, certeza, sentimento, pessoa, que em alguns casos, não nos abraça no final com o calor do acolhimento próximo, e sim com a frieza de um êxito desperdiçado. Entre outras peculiaridades da senhora Ella, ela era verdadeiramente fascinada por vaga-lumes, as ponto de nunca precisar de uma explicação para se deslumbrar com suas faiscantes alfinetadas no perigo subentendido, tecido de qualquer escuridão. Ela os acompanhava com os olhos, míopes de preguiça e conformismo, pois a desculpa do medo da operação, risco de vida, não sustentava o que realmente ela tentava encobrir de si mesma, o medo do cirurgião olhar dentro dos seus olhos, e ser cúmplice silencioso, testemunha indireta, ou até mesmo confessor, ou melhor, confessionário, que ali dentro ela guardava essa joia que brilha sem motivo, e se surpreende de não ter sido tocada, feito um anel, pedido a dedo, medido a exatidão, pedra sobre pedra, escolhida da infinidade, entregue para nunca ser utilizado. Ella acreditava na magia da vida, ao ponto de todos os dias visitar seu túmulo, de frente para um banco de ardosia, e se esquecer, de que visitava a si mesma, pois mesmo depois de perceber o aniquilamento da negação mais que invisível, fazia questão de esquecer a reflexão do calendário, e não se dava conta, sempre quando voltava ao mesmo lugar, de que se repetia indefinidamente, chegando as mesmas, variáveis conclusões, pois seus pensamentos se mesclavam com o teor das nuvens, com a velocidade do tempo, com o gralhar do silêncio dos pássaros, com a ausência ou presença de relâmpagos no cenário mortal. Cada variante, cada tom expressivo na liquidez esparramada do céu, do tingimento de suas nuvens, cicatrizes de sua pele cerúlea, lhe convertiam ou dirigiam as reflexões para dramáticos temas, aparições de sua vida, menos trágica do que feliz, mais feliz do que inocente, mais inocente do que virginal. Acontece que a sobreposição de anos acumulados em um leito, feito grãos que caem do orbe, feito neve, neve que não se derrete, mas grão brancos feito neve, que se amontoam em si mesmo, e cada tempo entre um tempo e outro, mais deformável, ou vulnerável era a recordação desses grãos, com se cada memória fosse um pedaço de esquecimento, e como se tudo que somos obrigados a renunciar para viver a vida minimamente de uma forma satisfatória e quase plena, pudesse ser revisitado, não apenas com o devaneio no divã, mas como quando nos predispormos a enfrentar uma reflexão profunda, quando resgatamos da origem as causas para o final. Existir não é apenas uma obrigação, pois nascemos sem saber que somos nascidos, ou fecundos de alguma forma, e que podemos inventar uma continuidade que aparentemente só se sustenta em um único argumento “preservar e promover a procriação da espécie”. Essa fecundidade já desapareceu na lápide, que mesmo exumada, não criará outra identidade única e pessoal, não será nunca mais a mesma, da mesma forma que não somos o que o passado nos faz lembrar, não seremos o que pensamos que o futuro nos promete. Ella não se reconhecia, a si mesma, frente ao espetáculo de seu silêncio tumular, mas nunca deixava de tentar ao menos não esquecer de se lembrar o dia, o mês, e o ano que estamos. Assim, sempre vencida, ela crescia na morte, por perseverar-se na vida, mesmo morrendo, por buscar o impossível, que se dissolvia a cada esperança luminosa do dia cuja branca noite se transformava em trevas. Dentro de si mesma, nesse abismo por trás do olhar, trazia o conforto de não mais pertencer a esse mundo, quando no fundo, apenas reproduzia o que todos vivendo, fazemos sem perceber, afundar-se na mesma escotilha, ou se posso ser mais claro, correr atrás do próprio rabo, ou ainda melhor, transformar em escada uma roda, como esses ratinhos latinos, que servem para ampliar nossas certezas, nossas deficiências, nossos buracos, ou seria, tapar os buracos de nossas perfeições? Como se fosse possível, buscar na morte o que não se conquistou em vida. A si mesmo, eu diria, analisando a rotina da velha senhora Ella, que enfrentou uma vida de descasos, enterrou um marido e perdeu um filho, que sem querer, quase estupida colocação, caiu do telhado. Desde então, sua morte era uma questão de tempo, talvez ali nasceu esse brilho no abismo, que lhe impos por fora uma estatura desproporcional a de dentro, e lhe obrigou a se equilibrar num mundo onde o asfalto era de manteiga, a calçada de gelatina, e as certezas escorregavam sobre seus pés. Evitava óculos escuros, pois amante da luz, sempre preferiu ver a vida sem filtros, e realçar seus mínimos detalhes, chego até pensar, que foram eles, os detalhes, que lhe ofereceram algum escolho, uma boia, um sinal, um propósito, não, seria demais, uma distração, para se apegar na vida, em sua superficialidade, de um modo profundo. Entrava num restaurante, sabia quantas mesas estavam servidas, ou em qual faltava um copo ou um talher. Passou a evitar a jogar cartas com suas amigas, por carregar por demais um buraco, cujas cartas não iriam conseguir esconder. Não tinha mais sentido, jogar um jogo idiota, quando já perdido o jogo, afinal. Seu marido alcoólatra, viciado em jogo, professor de escola primária, ou melhor, motorista de caminhão, isso, agora me lembro das noites de solidão que Ella passava esperando o marido voltar do outro lado do mundo, como se não houvesse fronteira entre sua inexistência e os breves intervalos com o qual brincava de repousar em casa. Isso, sua casa era um intervalo. E tudo isso foi sendo empurrado, erradicado, sublimado para dentro de um baú enferrujado cuja chave também era motivo de esquecimento. Essa dor doída que sentimos quando apertamos os dentes, quando repuxamos os olhos, quando fingimos não perceber algum sinal notório da vida, quando vamos a igreja, e presenciamos a virgem Maria chorar. Como não se afundar e se remoer diante de tamanha indução de todos múltiplos de sentimentos ao mesmo tempo, quando finalmente, descoberta o talhe, ou a colcha da ultima camada, o que sobra é uma risada tímida de uma sombria solidão. Tudo isso era perfeitamente compreensível, até certo ponto diluível pelas paredes mudas, e pelas gramas surdas do jardim, mas enquanto carregava seu filho, esse menino de 7 anos, o abandono, que acabava sendo justificado pela urgência do trabalho, de por comida na mesa, ao mesmo tempo que se evita confrontar, porque não outro emprego, será que toda essa direção, toda essas distâncias intransponíveis, todo esse esforço, é para ficar longe de mim? Ela silenciava, e calava uma pergunta cuja coragem jamais apareceu em seu glote, em sua clave de sol por debaixo da garganta, um sol em crepúsculo, mas ainda resistente, um sol que não ousou em perguntar, a pergunta que morre sem resposta. Ela um dia pensou, é melhor perguntarmos tudo que queremos saber enquanto estamos vivos, ou enquanto a pessoa que nos afastamos mais pelo desconhecimento do que pelo medo da aproximação, mais por culpa e expectativas que nos iludimos ao ponto de achar que o outro tem sobre nós, como quando ela não satisfez seu marido, por cólica, e sequer a cólica foi anunciada, e ela achando que ele, talvez, não a procurou mais, por anos, por causa de um silêncio que teria sido interrompido com o dom da palavra. Tudo isso eu sei, pois acompanhei de perto, quase de dentro, quase como se pudesse ouvir as vozes que lhe aturdiam os pensamentos, quase como se pudesse escutar e dedilhar seus pensamentos ao mesmo tempo que escrevo esse obituário, ou esse epitáfio que precisará de uma quantidade inexequível de mármore para poder ser escrito. A mãe, velha, pois ele nasceu quando ela já era avançada nos 50, e o pai, mais jovem, que lhe impulsionou, no início um rejuvenescimento que toda mulher busca a partir de certa idade, com postura ou sem, com vergonha ou sem, com faca ou batom, elas buscam, e quando obtém sentem o néctar sendo despejado como um perfume de nuvens escorrendo em seu torso. Tudo isso que sei, e muito mais, além do que as palavras me permitem lembrar, além do que meus sonhos me permitem sonhar, e quando, também eu, vou lhe visitar, sempre com flores, sempre arrumado e com a barba feita, o jeito que ela gostava de me ver, apesar de nunca ter me visto. Onde estávamos, exatamente, quando seu marido desapareceu, ele simplesmente não morreu, ela enterrou um uniforme, de quando uma vez serviu ao exército, gastou o que não tinha, comprou um jazigo para dois, e enterrou o marido que nunca mais voltou para casa. Sempre que podia, ela ia lhe visitar, e foi bem no dia da visita, quando o sol ensolarado de luz e calor, e amarelo de quebrar a retina ao meio, se deformou, sendo escondido, sequestrado do céu, e o tempo fechou, e os raios começaram a cair, trovões de desconstruir melodias atemporais. Ella correu, em seu vestido de seda branco, enfrentando a tempestade e pensou em seu little boy, escorregou, levantou-se, e nem deu tempo de pensar se sentia a chuva enquanto corria, ou se respirava aflição em cada retumbante trovão, que lhe tremia. Ela chegou em casa. A tempo, a tempo... a tempo de ver seu menino iluminado, ser atingido por um raio, e intacto, despencar do telhado, onde brincava com seu pequeno ursinho. Sim, ele era autista, mas nem isso fez dele um imortal. Ella empalideceu o rosto da eletricidade, e por horas ficou debaixo da chuva, abraçada a seu pequeno menino, e a chuva passou, o tempo passou, e a única coisa que não conseguia mais esquecer, era o ursinho, que dormia junto a ela, no lado direito da cama.

O JARDIM FANTASMA

Era algo entre o clima e a superfície de segredos que misturam na névoa de uma paisagem aparentemente bucólica, silenciosa e inquieta. Eu não sabia se devia mesmo estar ali, mas essa inquietude certamente comprometia meu estado interior, me parecendo mais uma projeção dos meus anseios, do que propriamente uma razão secreta que tenha um propósito específico. Pensei, será essa onda de desaparecimento, onde cobrem as árvores e os penedos, as rochas amolecidas pela miopia de olhos cuja cor já consegui esquecer. Trazia um espelho, esse de pequeno luxo, onde as marmóreas pérolas, davam a seu possuidor uma tênue, porém fantástica sensação de requinte. Resolvi abri-lo, não para me enxergar, mas para descobrir o que existia dentro dos meus olhos, esse algo que está além da cor e mora onde ser humano ordinário não toca, ou porque não se percebe, ou porque não consegue mesmo ver. Cegos tem esse direito, mas não cegos adivinhos, cegos que olham na escuridão e descobrem as tochas por onde os rastros fantasmagóricos de uma maldição passaram sem deixarem-se apagar. A névoa aumentava fora, a medida que eu procurava dentro, esse olhar de cor indefinida, quase em preto e branco, como se tivessem sequestrado a cor do meu olhar. Acho que isso nos traz a vida, vivida as últimas consequências, nos apagam os olhos. Imagino como somos vistos por alguém, que sequer nos ver, imagino com é ser visto por todos, que também continuam não nos vendo, pois mostramos apenas aquilo que intencionamos mostrar, e nos abrigos do olhar, da maquiagem posta sobre a iris disfarçamos uma miríade de sensações e sentimentos não muito honrosos. A inveja por exemplo, diferente da felicidade ou da alegria, essa sempre posta sobre a face, mesmo quando nascido do comentário ou do confrontamento mais patético, nasce do ridículo, do pretexto ridículo entre nós apenas para demonstrar essa felicidade crível e sustentada por um sorriso idiota. A alegria sim, está é mais leve, já que a felicidade verdadeira dispensa o ridículo, até mesmo o sorriso, como um sábio dispensa seu ego para explanar sua sabedoria, ou mesmo para silenciá-la e guardá-la só pra si, para se retroalimentar de si mesmo enquanto medita sobre todas as hipóteses, todas as contradições, todas as possíveis e impossíveis variáveis, o que não vejo muita utilidade, pois sabedoria não compartilhada é como uma gruta celeste despida de anjos. Mas repensando sobre a leveza alegre que faz com que nossa face exprima espontaneamente um sorriso quase tímido, as vezes empapuçado de uma gargalhada exibida, as vezes melindroso, as vezes ineficaz, as vezes mudo, as vezes sombrio, as vezes reprimido. Pergunto ao espelho que me faz chorar, se essa alegria reprimida não seria uma espécie de lágrima, que nos transpassa a carne do olhar, e nos absorve em uma expressão, principalmente diante de um espelho, onde todo mistério, se poem a mostra, no evidente de uma perceção que espalha uma certa dose de sofrimento, muitas vezes relacionando a algo que nos inflige a memória que nos sequestra. Onde estaria eu agora para esquecer? Se revelasse de pronto os gramados húmidos que me cercam, os cedros se escondendo em sua maestria imóvel, tocados por esse rarefeito que qualquer folha arrasta, preenche, modifica, o ar que dá forma ao vento, a inspiração que faz com que o imóvel se mobilize, para chacoalhar pássaros e morcegos, vaga-lumes, e varejeiras, espíritos e caudalosas esperanças, desejos crescidos e talvez realizados, coberto por décadas, semeados pelas mãos daquele que um dia essa majestade verde plantou. É verdade, sempre dizem que temos que fazer três coisas antes de morrer. Acho isso tão estúpido, com tantas coisas para se fazer, passar uma vida fazendo apenas três coisas é um acumulo de desperdiço, não acham? Não, não pensei em drogas, sexo, e rock n roll , está certo? É assim que se escreve, rock? Sou velha demais para me lembrar se cheguei a escrever um livro, a plantar uma árvore e, o que mais mesmo..., sempre tenho uma discreta falha de memoria que me obriga a carregar esse espelho, para assim nunca esquecer de quem sou. Minha avó já dizia, sempre olhe no espelho, caso se esqueça de quem você é! Infelizmente ela não diz mais. As vezes sinto esses cutâneos malabarismos da paisagem como algo de sobrenatural, se bem que no fundo, nesse fundo onde tudo se revolve, e não resolve, apesar do turbilhão de efervescências que nos conduz a uma gastrite inevitável, ou uma sensação de falsa gravidez, a gravidez fantasma, as pontadas no útero que um dia carregou a possibilidade da vida, e hoje apenas como um museu, carrega a cova de um passado repleto de erros, de ausências, de culpas, de vazio, de um pingo de felicidade. Porque não deixamos de sentir isso a partir de uma certa idade? Talvez, não sei, não sou escolarizada a esse nível, mas pressinto que tem algo de comum em tudo isso, digo , na sensação que nos soterra diante da magnitude de um destino que se encostou perto do final. Acabamos de uma certa forma, se por mecanismo ou por inanição, a relembrar mais daquilo que deixamos de fazer, ao invés de nos contentarmos com aquilo que fizemos. É como se um tapa ficasse muito mais talhado nessa pele memorável, do que um beijo, um carinho, um abraço. Mas de qualquer forma, ainda pelo menos não preciso utilizar mapas para saber onde estou, isso seria certamente uma agravante de minha irremissível condição. Não se lembrar de quem é, um espelho pode ser quase sempre confiável, mas não saber onde está, é uma impotência tamanha que não nos permite mais distinguir entre os vivos e os mortos. Não digo na padaria ou no salão de beleza, uma se sente com o cheiro do pão na chapa, outra com a acetona do esmalte, mas entre a vida e a morte, não imagino como possa ser possível, distinguir uma da outra pelo cheiro, qual é o cheiro da morte? Ainda não me recordo de ter morrido, ou talvez já até isso esqueci, por ser um pressuposto da morte esquecer ou abster-se da vida. Se ao menos tivesse alguém que pudesse perguntar: Ei, você, estou viva? O problema é perguntar para uma pessoa morta, há tantos tipos desse ai nessa nossa suposta modernidade. Vim de uma época clássica, onde morto era morto e vivo era vivo. Entre outras certezas generosas demais para eu aqui me detalhar sem ofuscar o gênero comum da vida e da morte, pelo menos em português. São ambas femininas, apesar que sempre a imaginei com um traje branco, um homem, um cavalheiro, um campeão, com sorriso do tamanho das pérolas mais lustrosas desse mundo, com chapéu coco, e com uma bota, essas com esporas. Um revolver de cano grosso, e um olhar cuja cor permanece mais estonteante do que o brilho das estrelas, um azul de fazer inveja aos mares mais puros do encanto de nossa credulidade. Há, me recordo, tudo isso começou quando pensei em lembrar em discutir, diante do espelho, a palavra que tanto faz os corações tremerem, como se fosse um demónio a ser combatido e exterminado, ou apenas uma crença construída em cima de uma sociedade onde notória desigualdade social se faz premir como gotas numa forte tempestade, quando você, desprevenida, é pega sem guarda-chuvas, e num vestido de seda branca. Imaginem a vergonha. Talvez isso tenha alguma relação com a inveja, a vergonha de sentir inveja. Mas inveja se sente com a cabeça, ou com a alma, ou existe uma diferença, entre inveja racional, e inveja transcendental. Como invejar, não é melhor trocar a palavra por apreço? Eu atesto que na minha época inocente o apreço por algo, ou a admiração e fascínio por uma beleza maior, ou um dom incalculável, um virtuosismo magnífico num magnífico violinista, libertávamos nos a todas, e saímos preenchida por esse milagre de viver a experiencia dentro através do outro que vive fora. Mas talvez isso seja coisa mais para homens, esses que disputam contra si mesmo, ou contra os outros, para se afirmarem perante si mesmos. Esses homens que passam uma vida em despropósito, sem razão, sem amor. Temos que aprender a nos maravilhar e admirar o admirável, e não consagrarmos a existência como um ringue. O único ringue é a cova, o túmulo, que antes de ser cavado com as pás que nos aterram, vão sendo erguidas dentro de nós, através de um processo exaustivo, de como mesmo posso tentar dizer isso, é, exatamente, essa ferrugem que preenche o cansaço, isso mesmo, oxidação. Engraçado, o mesmo oxigénio que nos respira, que nos faz viver, é aquele que se rebela, e nos mata. Essas contradições da vida, de dentro, pois como digo, primeiro nos sepultamos em nosso próprio egoísmo, ou nos pensamentos, fruto de um amadurecimento tardio, quando podre nos sentimos sem equivocarmo-nos. Essa permanente respiração, nos acostuma com a mais próxima ilusão de liberdade que ainda nos resta nos dia de hoje, ninguém jamais respirará por nós, apesas de sermos sufocados, isso não é respirar, e sim tortuosamente se permitir o próprio sequestro, quando nos deixamos de nos lembrar não apenas de quem somos, mas do que estamos fazendo, a vida, não a morte, vem com esse plástico, por trás, na surdina do segundo, e nos adverte com esse mata-leão, esse golpe, esse sufoco, esse atravessar um rio taludo debaixo d´água, como se o próprio folego somente se tornasse possível quando acreditamos nesse folego impossível, e tudo se suspende, a nevoa dos cedros, a grama dos mortos, o cheiro de sereno no ar, a humidade sobre os pés, humildade quis dizer, mas não tive coragem, acho que temos que nos abaixar em algum momento da vida e a recolhermos para perto de nosso peito, ou sofreremos de algum ataque fulminante, como esse espaço vazio que descarta, assolapa a inspiração. A mola condutora do maestro. Respiramos para viver, inspirando-se, e expiramos para continuar vivendo, inspirados. Acho que esse ponto faz toda diferença, esse trafegar entre si mesmo, esse aproximar de seus próprios trincos, essa dúvida, se o trinco é na minha face ou na face vítrea do espelho. Já não sei, tanto tempo olhando para mim para lembrar de mim mesma, que chego a pensar que imprimimos uma mesma imagem sobre algo que deveria atualizar a impressão, ou no mínimo, ser verdadeiro, pois essa é sua nobre função, ou propriamente, consequência, de revelar o que está bem diante de nós e não conseguimos enxergar. Eu vejo o trinco, e faustosamente prefiro continuar acreditando que o trinco é do espelho. Espalho algumas migalhas para os pombos, que se divertem mais que seres humanos miseráveis, nas esquinas desequilibradas do mundo, com uma pedra demolidora de condições, quando começamos a nos esquecer, de quem fomos, de quem somos, de quem continuamos a ser, quando depois dos pombos e das migalhas, que nos abraçam quase como uma invejosa alegria, essa que hoje se institui entre os combates terrenos, esses lobos de Wall street, é isso, street... lembro que me esqueci de ler alguma importância essencial com street, ou por descuido, ou por relapso mesmo, ou por ter tantas outras coisas para me esquecer, que a primeira coisa que devo fazer, a partir de agora, é me lembrar de mim mesma. É, acho que o que procuro quando olho além do olhar, nesse abismo profundo condição humana de cada ser vivo que vive e morre, que ri e chora, que ama e... odeia, é essa segurança que me falta, quando sempre insegura mulher, me equivoquei nos amantes que me possuíram, nas taças que trinquei, no amor que sempre idealizei. Somente agora reparo, na lápide mais próxima, o meu nome escrito e abreviado, o anos que nasci... e, santo deus, que dia é hoje? Em que anos estamos? Na próxima visita anotar mentalmente, não se esqueça de trazer um calendário. Fernando Castro

PAZ UNIVERSAL

PAZ UNIVERSAL Pelo brilho do sol, onde sentimos o calor, onde nossa temperatura se aquece. Somos homotérmicos. Quando juntos, parece que nos aquecemos mais uns com os outros, do que desemparados pela ausência do outro, que nos empurra para dentro e convivemos apenas com nossos pensamentos. O que acontece hoje no mundo, da noite para o dia, assistimos um tirano demonstrar seu desprezo pelos valores e princípios que tantos, cidadãos, ongs, Estados, que se esforçam para proteger, num mundo ainda cercado por contradições, por correntes invisíveis do poder, por uma guerra de forças que se opõem, ao mesmo tempo que são preenchidas por uma variável de fatores, outras ondas que ora refrescam, ora esquentam o equilíbrio do mundo. Onde encontramos saídas num mundo que já superou os limites de suas atrocidades, e a única resposta foi a Paz? O que é a paz, senão a convivência pacífica e harmônica entre os povos? Esse símbolo, uma palavra que nos traz tanta coisa, que já foi utopia, e hoje se cristaliza como raízes que penetram o solo da terra. O que é a paz senão a conclusão e aplicação do respeito? Ao próximo, a si mesmo, a razoabilidade das leis, senão um período onde estamos seguros que nenhum tremor abalará a esperança que temos de permanecer felizes, com todos os percalços de uma felicidade abalada pelo próprio contexto e cansaço do cotidiano, mas com a certeza de voltaremos para casa, senão felizes, e cansados, mas que chegaremos em nosso lar, para que uma simples poltrona nos devolve o relaxamento que esquenta a felicidade tranquila, de que sim, cumprimos mais um dia, contribuímos para nosso entorno, garantimos a segurança de nossa família. O que é a paz, senão ampliar no mundo essas garantias, garantias de uma estabilidade que torna consciente os líderes, que devem honrar seus súditos, seus representantes, seus cidadãos. Essa troca constante que hoje vivemos, de sorrisos, afetos, que a tecnologia nos aproximou do amigo que conhecemos na viagem mais distante de casa, nos fortalece e nos humaniza ainda mais, atravessando as fronteiras do que um dia foi nacional, para hoje internacionalmente afirmar esse humanismo que a todos nos toca. Através de uma sintonia fina, de preocupações globais, de um imediato acesso ao que acontece do outro lado do mundo, não nos sentimos apenas solidários, mas ao mesmo tempo, indignados, pois não só lidamos com as nossas próprias carências de nossa sociedade, que já nos ultrapassa por ainda não termos tomado a frente, usando a tecnologia disponível hoje no mundo para filtrar as intenções daqueles que aspiram cargos públicos, cuja responsabilidade implica o dever de atenção para com a vida de muitos, mas nos vemos diante de uma situação absurda na qual nos resignamos, nos sensibilizamos, nos confortamos, e no muito, nada nos resta a fazer senão orar. Quem, além dos próximos afetados diretamente por essa eclosão de uma ambição pretensiosa, dos vizinhos, da OTAN, dos mercenário contratados, do povo local que se rebela e se vê com as mão manchadas de sangue empunhando armas, quando ontem mesmo salvava vidas com um bisturi, hoje atira num homem, um igual, para defender todo o contexto, e o futuro de seus filhos. Qual contexto? O que nos priva da liberdade. Ser livre dentro do próprio espaço, digo, do território circundado por uma imaginária linha que delimita fronteiras, já é algo que foi conquistado com esforço e determinação, quando penso na frase “vale muito mais um ruim acordo, do que um bom litígio”. Nós recuamos o que podemos, para não voltarem manchar as ruas de sangue, e limpar restos de civis e pessoas que não tem nada a ver com as megalomanias, ou intenções obscura, que utiliza um pretexto, uma desculpa inventada, para dar ao seu povo, a justificativa necessária de destruir um país, de invadir um país, de passar por todo respeito que a ordem mundial nos reforça, para justificar seus fins, desprezando os meios, quando já nos estabilizamos social e culturalmente, que são as justezas dos meios que legitimam o fim. O que é a paz, na mão de um oficial, que obedece ordens, treinados para matar, depois que a guerra cessa, e o silêncio da desesperança e do remorso vazio, onde as cavas, os túmulos nunca mais estarão repletos do vazio, quando ele ao voltar para casa, e ao dormir, se deparar com o sangue que tinge suas mãos, a memória que nunca mais deixará de perseguir esses soldados, cuja única diferença de um assassino, é descarada, despudorada lei, hierarquia fictícia que promove e sustenta um governo, condecorando assassinos com medalhas de heroísmo, e entulhando seus irmão numa vala comum, com a marca de traição . O que é paz, no coração dos mortos, diante dos familiares vivos que serão obrigados a tapar um buraco que nunca mais deixa de pulsar, de se agarrar numa fé, que muitas vezes acaba sendo a única alternativa, para aplacar a dor, não porque se acredita ou não, mas porque se precisa acreditar. Essa alienação frente o ritmo do mundo, essa covardia diante de seus próprios cidadãos, essa audácia diante do mundo pacificado, é algo que faz a paz parecer tão efêmera quanto um sonho, como se ainda precisássemos de mais que diplomacia, para como adultos, resolvermos conflitos, que infantilizados, afastam o homem de sua razão, de sua maturidade e bom senso, de se equilíbrio, e o reduz a um bebe cercado com brinquedos feitos para crianças bem além de sua idade. Como um louco pode ter tanto poder? O simples fato, de distorcer as informações, de controlar a midia, de corromper as mentes criando um inimigo, para escusar-se do ato, que em seu íntimo deve alguma centelha de humanidade considerar no mínimo vexatório, passando por cima de tratados, de Budapeste, passando por cima de referendo, onde 65% dos ucranianos decidiram permanecer ucranianos, passando por cima do mútua reverência que uma nação espera da outra, hipnotiza um mundo perplexo, encara soberbamente as consequências lógicas de seu atrevimento, e mais, nos atropela a todos, com sua apatia frente aos valores mais caros do homem contemporâneo. A justiça, a liberdade, a igualdade, a fraternidade entre irmão de hino e parentes do além-fronteiras, todos esses esteios que são pilares garantidores da paz, essa harmonia de vozes em coro, que cantam calmamente para nos aquecer de manhã, mesmo no inverno, que nos conforta, que nos protege, mesmo sem percebermos-lha, como um manto, uma coberta que nos aquece no frio gelado da vida as vezes inóspita, as vezes tumultuosa, as vezes não pacificável. Esse simples gesto de autoridade autocrata absoluta, nos remete a um absolutismo que não tem mais espaço no mundo de hoje, que deve ser condenado e reprimido por todos. Quando digo, que através da farsa e dissimulação se conseguiu livremente se aproximar e cercar 2000km de fronteira, é porque covardemente, teve olhos para enxergar seu alvo, o coração de seu falso inimigo, pois a inimizade não passa de propaganda para justificar e apaziguar os devaneios e insubordinações, os conflitos, a indignidade de seu próprio povo, que mansos como ovelhas pascendo nos jazigos ocultos pela grama nevada, de uma paz justificada pela mentira e pelo desengano, ceguem surdos, com a consciência tranquila diante do silêncio da verdade, e da omissão dos fatos, distorcidos para frear a fera de um povo que tem o direito de fazer seu governante se submeter a uma comoção e apelo nacional. Ter a coragem de encarar um inimigo fraco, que pela independência abriu mão de seu arsenal nuclear, o que no mínimo lhe garante proteção de todas potencias civilizadas do planeta, não tem coragem de encarar seu próprio povo nos olhos, dissimulando intenções, quando no escuro, planeja o que nós talvez por estarmos por demais, adocicados por esse efeito pacífico e inebriante da paz, nos amoleceu os sensos, e nos levamos de acordo com aquilo que esperamos que o outro faça em nosso lugar, subestimando a ferocidade humana, seu orgulho, e sua ambição, como se isso fosse um assunto pacificado, e não uma questão inerente a condição humana, que mesmo civilizada, utiliza a própria inteligência para bestialmente agir como um mentor, um defensor, um político que defende seu direito de politizar sangue, ossos, e vidas humanas. Temos sempre a credulidade que nosso inimigo, por pior que seja, seja, talvez por ser tão humano quanto nós, no mínimo aparentemente, corresponda a mesma ética, ou melhor, eticamente diante de situações potencialmente conflituosas, belicosas, incoercíveis. O que tento dizer, de uma forma simples e delicada, é que não podemos subestimar os psicopatas do poder, não podemos deixar o mundo sopesado em nações que se recusam a permanente contradição de si mesmo, partidos de oposição, pois se não posso me opor, tenho que me subestimar, e isso não é um reforço da liberdade, pelo contrário, e uma genuflexão ao escravocrata. Tamanho impacto que a Russia fez, ao se mostrar elegante diante dos olhos do mundo, na copa do mundo, apenas para se mostrar “ocidentalizada”, para agora nos revelar suas entranhas, se unindo com a China onde outro ditador impõem suas ordens, e controla o intercambio de informações da internet, ou seja, governa através da censura. Como podemos inclui-la no mundo, se sem desculpas, nos pisa, retalha nosso condão de humanismo e proteção, guia de toda nação que vigiando se vigia, que até chego dizer, oprime seus sentimentos mais pre-historicos, onde o caos regia a ordem, e uma organização básica era suficiente para delimitar limites e territórios, mesmo que a força impusesse seu poder, já andamos milhões de anos para frente, para hoje ainda não decifrarmos um sentimento, um estado, um conceito, uma visão de mundo por trás de uma simples palavra. Paz. Que sua contradição seja a guerra, o seu oposto, mas calculando o quanto de aprendizado que ao se poupar vidas, investimos em nosso futuro, descartando traumas, e progredindo nessa amplitude, nessa visão, ainda utópica, mas em vias de se concretizar, devido a não interrupção e manutenção das hegemonias promovedoras da paz universal, hoje espalhadas por varias partes do globo, mesmo discordantes em atributos, acordadas num simples fio que a todos nos costura, a justiça cega, a fé indiscritível, a ciência globalizada, a certeza da humanidade por trás de cada rosto, de cada face, essa concordância geral, nos aproxima de um mundo onde a esperança vinga, mais que ressurecta, ela imprime nosso sono e amplia nossos vínculos. O que é a paz, senão o chão que precisamos para tecer nossas fortalezas, que só foram transformadas em casas, porque ousamos acreditar um nos outros? Será que ainda teremos que ousar, ou poderemos, mesmo depois dessas noites iluminadas, simplesmente acreditar? O que é a paz universal, senão o exercício e aplicação máxima do perdão e da compreensão em toda sua extensão, não porque as atitudes deixaram de ser tipificadas, mas simplesmente por que atipicamente deixaram obsoletas todos os códigos penais?

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A ROSA OCULTA

A ROSA OCULTA

 

ATO I

 

 

 

Um imenso lustre de cristal no meio do palco. Uma sala decorada em estilo Luiz IVX, com um leve contraste, tons pretos, expondo uma perfeição sombria sobre o ambiente. Um carrilhão, um bar, sofás e poltronas, chaise longue, e uma cristaleira. Janelas que alcançam o pé direito alto da casa, com esvoaçantes cortinas véu de noiva. O espetáculo inicia apenas com a escuridão, como se a casa estivesse mergulhada em trevas, e um spot de luz numa Ânfora, que se destaca em cima de um móvel de mogno no canto direito do palco. No fundo, Fur Elise, docilmente se mescla ao tom tumular e erudito da maison. Conforme a música vai se desvanecendo, a luz aumenta, e Dona Rosa, uma senhora de expendido bom gosto, carregadas por joias, entra com sua piteira, levemente agitada, e senta-se na chaise.

 

 

R: Virginia, Virginia! Cade você? Preciso de sua atenção, urgentemente. (sem resposta, D Rosa, já mais enérgica) VIRGINIA?

 

V: Sim senhora madame, já estou indo.

 

Uma criada uniformizada aparece em cena, loira, dos olhos azuis, com a pele levemente mal tratada, mas ainda com o brilho que de toda e a cada qual juventude pertence. 

 

V: Sim senhora, desculpe-me, estava a lustrar a prataria, por isso minhas mãos estão assim, um pouco negras, me perdoe pela falta de presteza. 

 

R: Imagina querida! Não se incomode com isso. Bobagens. Preciso que sirva minha taça de champagne, e deixe o balde com a garrafa. Traga mais uma taça, estou esperando uma visita. Deixa que eu recebo, não precisa se incomodar.

 

V: Claro Madame, precisa de mais alguma coisa?

 

R: Se me trazer o que peço, já fico enormemente satisfeita.

 

V: Sim. Com licença.

 

Dona Rosa fica a fumar, e a pensar sobre seu passado, na dúvida entre revelar seus pensamentos aos fantasmas que a assistem, e calá-los, manter o silencio que a penetra e atravessa sua pele.

 

R: Essa espera. Nada pior no mundo que esperar, principalmente se for algo que muito nos interessa. Cria uma ansiedade que é deveras desconfortável, isso vai nos deixando confusa. Eu me perco nessa prolixidade de pensamentos que ora recordam meu passado, ora me fazem lembrar que já vivi quase todo tempo que por direito tenho nessa vida, e a chama que nos revela, ao mesmo tempo que nos tolhe, se encolhe, até que na perseverança do tempo, definitivamente se apaga. Eu não posso reclamar da minha vida, fui uma mulher, bem, não exatamente como hoje se define a amplitude que a palavra mulher conquistou, mas dentro do meu tempo, da minha era, relativamente livre. Vivi nos melhores lugares, conheci os castelos mais memoráveis do mundo, jantei com rainhas, me aproximei o máximo que pude, claro que com uma segura distância, da plebe, ousei a atravessar a India, fiz minhas sagradas peregrinações, de Compostela a Jerusalém, fiz cruzeiros pelos lugares mais inóspitos da terra, enfim, vivi sempre com luxo e fartura, com ouro, isso nunca me faltou, ouro, muito ouro, e diamante, claro, não como os da Rainha, mas não posso me queixar do tamanho dos meus, mas agora precinto o brilho que se apaga, mesmo os diamantes, parecem a brilhar menos, como se estivesse a falecer. Dizem que são eternos, eternos deveria sermos nós. Perdi meu marido recentemente, o querido Eugênio, e enfim, desde então, onde supostamente pensava que encontraria uma certa dose de liberdade, onde respirar se torna possível, sem ser sempre vista como um lustre, ao lado daquele cuja palavra pertence, essa coisa dos homens, que sempre nos tratam com certo desdém, como se fossemos no fundo, nada mais do que empregadas de luxo. Se satisfazem entre eles, e nos usam como companhia, por isso essa nova moda, onde os casais se misturam entre si, e homem com homem, e mulher com mulher, andam juntos, aquilo que me dava originalmente uma repulsa, ao pensar mais profundamente, percebo a importância e o significado dessa nova ordem, assim digamos, a liberdade, exatamente, esse poder sentir-se confortável ao lado da pessoa que pertence ao seu próprio mundo, ou sexo, eu diria, que não lhe trate como um lustre, como se a verdadeira pareceria, que raramente acontece entre nós, mulheres casadas, fosse mais autêntica, mais real e em maior proporção. Mas eu ainda acho que não conseguiria me deitar com uma mulher. Tenho muitos pudores, e algemas de fé entranhadas em meu peito, mas confesso, que dentro do nosso mundo, das nossas particularidades, ultrapassei a linha do permitido, e vivo por alguns uma aventura proibida. A questão é...

 

Toca a campainha. Dona Rosa se emerge de seus pensamentos e reflexões e vai em direção a porta, para receber sua visita. Uma amiga de velhos tempos, mulher de classe e finura, Dona Ema, elas se abraçam com certo decoro, e se reacomodam na sala de estar. A luz clareia levemente o encontro, como se fosse o sentimento caldo que sentimos ao recebermos alguém querido em nossa casa. 

 

 

E: Minha querida, como você está explendida! 

 

R: Todo esse tempo sem nos vermos, você acha mesmo que continuo a velha Rosa?

 

E: Magnifica, esta brilhante, infelizmente esse passeio pela Africa se estendeu mais do que devia. Ricardo adquiriu uma febre no Quenia, e tivermos que atrasar levemente o roteiro.

 

R: Mas deu tudo certo? Ele não morreu imagino!

 

E: Sempre com o mesmo tom, adoro suas pilherias, não, não tive a mesma sorte que você!

 

As duas riem até o limite do cordial.

 

R: Aceita uma taça, claramente! (já enchendo o copo, aproveitando para completar o seu)

 

E: Vamos propor uma brinde a que exatamente.... a nossa amizade?

 

R: A morte!

 

E: Nossa minha querida, como estás sombria ultimamente!

 

R: A cada dia fico mais escura, sinto essa flecha dos pressentimentos ocultos sendo riscada no meu peito, perfurando minhas vontades.

 

E: Tem que sair mais de casa, e procurar se distrair o quanto pode. Não faz bem aos nervos ficar trancada dentro de um só lugar. Ninguém suporta isso, não por muito tempo. 

 

R: Já não me sinto livre o suficiente para sair. Estou presa na minha própria casa, mas vou a feira de vez em quando!

 

As duas riem da piada.

 

E: Nem as joias tem te entretido mais, você gostava tanto de diamantes!

 

R: Sim, eles também adquiriram um tom sombrio. Aceita mais uma taça?

 

E: Mas eu nem terminei a minha. 

 

R: Pois eu aceito. Você pode me servir, estou com uma caimbra nesse atual momento?

 

E:  Mas me diz, o que tem te afligido tanto, parece realmente, agora que comentaste um pouco, assim, digo, bem pouco, atormentada. 

 

R: Pois não estou? Preciso aliviar-me das cargas que me assolam, e confessar, nem que seja para uma única pessoa, no caso você, a transgressão moral que impus a mim mesmo e a minha consciência durante os últimos anos da minha vida. 

 

E: Mas como assim querida amiga. O que possa ter feito que a leve a tomar uma atitude que considero, séria, para no mínimo não dizer comprometedora, pois do jeito que falas, parece que cometeste um crime.

 

R: Alguns poderiam enxergar dessa forma, mas a maioria desse olhos já estão mortos. Estamos ultrapassadas, ultrapassadas pela vida e por tudo que de novo ela contém. O mundo não mais nos pertence, não importa quantos diamantes possamos ter, eles simplesmente não é mais nosso. Temos que admitir que somos como navios enferrujados, afundados, no máximo enfeitando o fundo do mar, dando abrigo a algas e peixes, sem mais poder navegar. 

 

E: Quanto exagero, eu não me sinto assim, levo a vida como sempre levei, carregada pela legítima leveza que me pertence. 

 

R: Isso é porque ainda não trocou o espelho. Os espelhos também tem sua validade, e depois de alguns anos passam a refletir o mesmo que sempre vimos, mas perdeu sua liquidez, e não revela mais o que vive dentro, a decadência pura e total. Os espelhos são ardilosos, eu aconselharia você a trocar o seu, quem sabe assim enxergara no fundo de teus olhos, e perceber que essa maquiagem que nos cobre, não passa de uma barata decoração, de um enfeite, pois, não é da velhice que estou falando, pois isso nos acomodamos com o tempo, mas da tranformação dos valores, que congelaram os nossos espelhos, e é preciso coragem para perceber isso.

 

E: Eu ainda não estou te seguindo, sinto que está angustiada, e tem algo que quer me dizer, mas não precisas alisar minhas entranhas, querendo denunciar um problema que talvez seja apenas teu. O tempo não muda, ele passa, e nós vamos sobrevivendo a força que pertence a tudo, nos distraindo, jogando baralho, indo viajar, jantar fora, essas coisas simples, afinal, o que tem de melhor pra fazer, quando ainda se tem dinheiro? Muitos de nossos amigos foram a banca rota, e teve aquela tragedia, o que se suicidou, o Machado, acho isso tudo muito confuso, trocar a vida pela morte, o que leva alguém a tamanho desespero? 

 

R: O encontro imediato com o fracasso. Quando não conseguimos dar mais um passo, e admitir que perdemos o jogo, torna a vida simplesmente um lugar insuportável para estar. Quando não existe mais propósito! 

 

E: eu aceito mais uma tacinha dessa bolinhas que nos fazem flutuar. O clima está pedindo, se não se importar de me servir mais uma, por gentileza.

 

R: Imagina. Está servida! Virginia, traz mais uma garrafa! A ideia é mesmo nos entupirmos dessas bolinhas, para que certa embolia espiritual se instaure nesse nosso encontro, e possamos juntas atravessar esse muro de incertezas que nos encobre!

 

E: Quais incertezas, de que muro estas falando?

 

R: Você sempre sonsa , sempre soube e não teve o gesto honesto de falar comigo. De me contar, até mesmo para me aliviar dos meus próprios nós, me deixando sempre perturbada quando entrava em algum lugar, numa paranoia de não saber  se estava conversando, enquanto ria, do meu segredo, ou se eram apenas estupidas fofocas. Sentia o tremor no salto, e preferia desfocar minha mente do pensamento, para não estremecer e empalidecer frente as outras pessoas, que sempre me viram como uma fortaleza, como se eu não fosse feita de ossos, a esposa digna e fiel do Doutor Eugenio, o presidente da Academia de Letras, o memorável e notável ensaísta, o célebre escritor, que mesmo morto faz tremer o coração de quem o sente. E eu, ali, naquelas reuniões ridículas, vetustas, um candelabro apenas, uma mulher que não completou o ápice de sua graduação, não fiz faculdade, mas me letrei o suficiente para não envergonhar o meu querido e justíssimo marido. Se soubesse o gênio desse homem, iria realmente acreditar porque na ânfora onde deveriam estar suas cinzas, eu depositei a preciosidade que sempre me dobrou, na ilusão de ser mais que alguém, quando todos estamos amaldiçoados por esse feitiço da imortalidade.

 

E: Não sei do que está falando, sinceramente, acho que estás um pouco alterada.

 

R: Claro que sabe, não se faça de retardada! 

 

E: Está mesmo fora de si.

 

R: Confessa!

 

E: Mas eu não sei de nada!

 

R: Sabe, sabe sim, confessa de uma vez por todas, santo cristo!

 

E: Não tenho nada a dizer! Meu silencio fala por mim.

 

Rosa pega Ema pelo braço, e começa a torce-lo, nem gesto abrupto e desproporcional.

 

E: Ai, você esta me machucando!

 

R: Espero que não precise usar o picador de gelo! (apertando mais)

 

E: Ai, sua maluca!

 

R: Sua vaca! Fala logo porra!

 

E: Confessar o que?

 

R: Confessa que você sabia de tudo?

 

E: Eu não sei...

 

R: Confessa!

 

E: Aii, ai, meu deus, confessar o que?

 

R: Do Valério! (ela solta o braço da amiga, se recompondo)

 

E: Meu deus Rosa, você está mesmo doente dos nervos. Nunca te vi assim. Valerio, que Valerio, o seu motorista, o que tem o seu motorista a ver com tudo isso?

 

R: Voce mesmo não sabia?

 

E: Não, não sei, e ainda continuo não sabendo...espera!

 

R: É isso mesmo.

 

E: Não pode ser!

 

R: É, claro que pode ser, e ainda é!

 

E: Meu deus!

 

R: Fala!

 

E: Você e o Valério são amantes!

 

R: Isso mesmo, até que enfim você disse, eu precisava ouvir isso da boca de alguém!

 

E: Nossa Rosa, não sei nem o que te dizer.

 

R: Claro, sempre pudica e correta, fala o que teu silêncio cala! Confessa!

 

E: Estou em choque... confessar o que pelo amor de Deus?

 

R: Que me acha uma puta!

 

E: Não, bem, não, não exatamente, mas nunca imaginei, que você, sempre corretíssima, pudesse ter um caso com seu motorista, trair seu marido assim, e especialmente com o Valerio.

 

R: Percebe agora, como ainda seus espelhos são os mesmos, como ainda vive num mundo que não existe mais, como fomos ultrapassadas pelo peso das mudanças inexoráveis. Hoje mulheres que são mulheres, se transformam em homens, e você me diz que acha isso normal? Homens arrancam o pénis, e implantam uma vagina, pessoas casadas a três, a juventude delinquente perdida em drogas, que não são tao normais como aspirina, jovens tão novos endiabrados, essas músicas, essas festas, esse antros que deus plantou uma semente do diabo, daqui a pouco homens estarão a engravidar, e eu que sou uma puta, porque tenho um caso com meu motorista? 

 

E: Não quis dizer exatamente isso!

 

R: Mas foi isso exatamente o que disse. Sabe quantos anos que Eugenio não me tocava, sabe a frieza que imperava dentro dessas paredes, das paredes do meu quarto, quartos separados, graças a Deus,  sabe quando foi a ultima vez que ele foi me visitar, e você acha que não tinha ou não tenho o direito de sentir desejo?

 

E: Claro que tem, todas nós temos.

 

R: Então porque não arruma um amante, ou acha que não sei que é frigida porque essa foi uma condição imposta pelo seu marido, que dividia os mesmo hábitos secretos que o meu, ou você é muito burra, ou muito hipócrita, se bastando e sufocando sua dor com joias e viagens impagáveis, ou vai me dizer que também que não sabia?

 

E: Eu realmente não sei!

 

R: Hipócrita. Você sabe, porque eu um dia vi você na espreita do seu marido.

 

Ema começa a ficar mais nervosa e enrubescida do que o normal. Suas mãos trementes buscam a garrafa, e as duas, na chaise longue, afiam as garras para continuar num magnetismo que as impede de sair daquele sofá, Ema revela uma explicita vontade de se levantar e sair daquela casa, mas algo a impede, e talvez seja, pela primeira vez em sua vida, esse algo chamado confronte a si mesma, esse algo chamado verdade)

 

E: Eu, espreitando meu marido, eu confio nele plenamente, somos casados por quase 50 anos, e nunca tive um motivo para reclamar da sua dedicação perante minha pessoa, se seu marido não te encostava, é porque deve ter algo em você que a torna repulsiva, esse problema não é meu.

 

R: Impressionante seu descaramento, e habilidade de manter a impostura de qualquer mentiroso especialista na arte da dissimulação. Consegue continuar negando aquilo que eu vi com os meus próprios olhos. No dia do casamento dos Magnus, percebi a desconfiança em seus olhos, o nervosismo disfarçado através de risadinhas vazias e impróprias, a contínua observação quase maníaca, obcecada por cada movimento que o Christofan dava. Ele te deu uma desculpa esfarrapada, algo sobre a urgência dos negócios, como sempre, e saiu antes de todos da festa, eu fui ligeira, e fui  pro meu carro, esperei você sair, e segui você, que seguia o seu marido. Foi la, onde você descobriu quem ele era de verdade, e eu ainda estou viva para testemunhar isso. Há 20 anos atrás, e você suportou isso sem mexer um fio da cortina, sem desentranhar uma gota de lágrima, uma ato de rebeldia, ou no mínimo, a decreto de um pedido de divorcio, mas não, você preferiu ficar calada e aturar tudo isso por dinheiro e diamantes, sua megera.

 

E: Aquele clube, era um clube de poker, foi isso tudo e nada mais, descobri que meu marido era um viciado em jogo (chorando)

 

R: Descobriu que seu marido era no mínimo um pederasta, igualzinho ao meu, mas eu pelo menos já sabia, e resolvi a situação de todas as noites de solidão da minha vida, amando o homem de sua confiança, me entregando feito uma cadela para o tamanho daquele homem, com cor de carvão, 2 metros de altura, um gigante que me arranca suspiros, e cada vez desejava mais que um vivesse, para o outro morrer. Enquanto você, sequer teve a decência de vir conversar comigo, desabafar, elucidar nosso mutuo desprezo. De ser uma amiga de verdade, o que nunca fomos, pelo visto, pois quem mais realidade vivia nessa vida eram os nossos maridos.

 

E: Eu não tive coragem. Pensei em me abrir com você, mas essa vergonha que nos faz tão humanos quanto uma estátua cheia de vida, me impediu. Você não pode me culpar por isso.

 

R: E você, mesmo sabendo que nossos maridos eram possíveis amantes, tem a audácia de me julgar e de me achar uma puta.

 

E: Eu tenho os meus princípios, que diferente dos seus, são inabaláveis, jurei ama-lo ate a morte, na doença, no inferno, na indecência da vida cotidiana.

 

R: Voce  tem ideia do que se passava aqui. O que se passou comigo quando descorbri que a tara do meu marido era por garotinhos, por meninos, que se eu posso dizer em uma só palavra...

 

E:  Pedófilos!

 

R: Isso minha cara. Até que enfim que consegui extrair uma gota de verdade de seu silencio. E como, te pergunto, porque eu não sei como consegui atravessar esses anos, se não fosse pelo conforto que tinha com o meu motorista. Criei um nojo, um odio , que foi gotejando dentro de mim, e me tornando de pedra, que era trincada cada vez que Valerio me deixava gozar. 

 

Rosa enche as taças, acende outro cigarro, e grita por outra garrafa. Virginia entra, e tropeça no tapete, quebrando a Cristal.

 

R: Sua loira burra! Desculpe-me Virginia, estou já alterada, não tem problema, deixe os cacos ai, são o que restam de nós. Só trás mais uma garrafa, alias, traga um bom e velho whisky, está na hora de bebermos a bebida dos homens.

 

E: Eu não sou muito afeita a whisky, a bebidas fortes!

 

R: Mas hoje vai ter que beber. Não vai fazer a desfeita de não me acompanhar nesse declínio nupcial. Me acompanha?

 

E: Não sei!

 

V: Trago o whisky?

 

R: Então Ema querida?

 

E: Está bem, estamos mesmo a partir correntes. 

 

E: onde estávamos mesmo?

 

R: Atrás do véu de Maia. 

 

E: É. Exatamente. Na crueldade da verdade!

 

R: Na sagrada “juntos até a morte na marital pedofilia beatificada”!

 

E: Isso. Um brinde, aos nosso maridos pedófilos!

 

R: Como pode não se abrir, segurar isso todo esse tempo, se acostumando, conforme os anos passam, e começamos a nos habituar, achar tudo normal, como quando entramos num labirinto de espelhos, e tudo que enxergamos são distorções, e depois de um tempo, elas passam ser não mais o defeito, mas o efeito puro e simples de nossa subversiva realidade.

 

E: Era isso que era aquele clube secreto! Eu contratei um detetive particular, mas acho que Christofan o subornou, pois ele me voltou apenas com retalhos da realidade, e disse que não tinha nada demais acontecendo, mas essa sombra não clareou, e no fundo, eu sabia que algo estava errado, e quando descobri a verdade...

 

R: Voce fez o que?

 

E: Eu quis gritar!

 

R: Entao grita!

 

E: Não consigo!

 

R:  Grita mulher! Grita filha da puta!

 

E: (gritando uma erupção)  Filho da puta! Desgraçado, calhorda, diabo, eu tenho nojo de você, nojo, seu bastardo.

 

R: Isso! Solta isso amiga!

 

E: Filho  da puta, fodedor de criancinhas!

 

R: Não eram criancinhas Ema, eram crianças. Um clube para ricos, para milionários, o clube secreto, onde só entrava quem pagava muito, e participava da ceita, onde meninos de todos os tamanhos, jovens, crianças trazidas dos quatro cantos do planeta, eram servidas, junto ao opio, junto a hermafroditas, junto a morfina, coca, heroína, junto com todo coquetel do inferno que existe na terra. 

 

E: Como um homem pode se deitar...

 

R: Penetrar.

 

E: Isso, como um homem pode penetrar numa criança, e voltar pra casa como se estivesse ido jogar golf? 

 

R: Esse lugar obscuro, esse útero do mundo onde estão guardadas todas as perveçoes humanas, onde não há nada que o dinheiro não possa comprar, onde a construção e conquista de uma moralidade que foi sendo conquista e destruída, e refeita, mas a cada destruição um pedaço, uma flor, uma centelha de dignidade e respeito ao próximo era agregada na pirâmide que sustenta o mundo, esse lugar no subterrâneo das trevas que da direito aos inimputáveis exercerem a totalidade, a monstruosidade de si mesmos e sem o peso que qualquer ultraje a um ser humano cria em nosso anterior. Eu também fui uma covarde por não ter denunciado sua gula inaceitável, e convivi esse anos todos, com um homem aclamado pelos deuses da terra, que sorria em publico como se não estivesse carregando uma bigorna no nó de sua gravata. E ainda dizem que pedofilia é uma doença. Uma condição, que seja para uns, mas existe uma outra pedofilia, velada, que a ciência encobre, que pertence a esses homens avidos por poder, que pensam que são os donos do mundo, que se dão direito de satisfazerem suas vontades sórdidas, custe o que custar, o sofrimento do outro é uma migalha, o outro sequer existe, nessa perversão, meu deus, são tantas as taras humanas, tantos os fetiches, esse novo mundo tornou tudo mais permissível e justo, porque ultrapassar a linha que separa o homem do monstro, como pode se sentir feliz, se em suas vísceras dorme um pesadelo. E o pior, que sequer culpa existia, se tivesse ao menos me casado com um sodomita, estava livre do seu fantasma, não teria sujado as minhas mãos nos seus novelos eróticos de meninos cujo único dever era proporcionar satisfação, a esses filhos da puta, que se emplumam feito pavões, defendem direitos humanos, discursam sobre a fé e a caridade, e são verdadeiros demónios, não sei se são, ou se conviveram tanto tempo com ele, que se esqueceram da humanindade, para se tornarem um dragão do inferno. Descosturam as teias que tecemos para reprimir nossa animalidade, com a facilidade e convicção de que isso não leva e não causa consequências, dor, traumas. Acho que todos nós, somos capazes de tudo, essa fera ancestral que carregamos dentro de nós, e só nos comportamos razoavelmente porque existe uma muralha, arames farpados que nos cercam e delimitam até onde podemos chegar. Mas quando um homem se torna um gigante, maior que as muralhas e as cercas que o limitam, não deve sobrar um mínimo de bom senso, que o impeça de devorar as outras pessoas? Quando no fundo, se não fossemos educados, para sermos bons, seriamos como esses bichos, que se alimentam das carniças dos mortos. Os dentes do extermínio, e devorando meninos, como se fossem pedaços de carne, na espreita da noite. O que leva um homem a agir dessa forma? Será que nascemos todos maus? Ou a maldade não existe, como dizia o filosofo...

 

E: Além do bem e do mal.

 

R: exatamente, esse voo, que quebra todas as amarras, e nossa santidade como nosso diabólico mistério reprimido, o preconceito, a raiva, o não suportar o outro em sua diferença.

 

E: Agora entendo quando diz que fomos ultrapassadas pelo mundo. De verdade, nunca troquei meu espelho. 

 

R: Temos que limpar a casa, ou suas presas nos engolem feito insetos. O espelho deforma nossa imagem, diferente daquele quadro de Dorian Gray, que ao invés de nos mostrar como somos, toda crua podridão, nos propicia a mesma visão inalterada e imaculada de sempre, como se não tivéssemos atravessado infernos, e cometido atrocidades, nos ocultando e nos protegendo de quem verdadeiramente somos, para estimular o vicio homicida da bestialidade. Não podemos usar o meio como desculpa, pois tantos nascem na pobreza, e não assaltam, não roubam, não matam, tudo bem, se foram catequizados pelas ilusões do controle, a religião, a moral, e a prisão, mas deve existir algo de genuinamente bom no ser humano, pois com certeza pressinto que por mais distante que estou do mundo, ele esta se tornando um lugar melhor. Mais alegre, mais livre. E eu ainda presa numa moral soterrada pelo velho senso e afirmação da lógica, que graças a grandes filósofos, retificaram certos preceitos, e legitimaram a autenticidade de novos valores, de condutas antes reprováveis, apenas por construções artificiais de pensamentos que repetidos a esmo se tornam verdades vazias, mas ao repensarmos o mundo, percebemos o quanto temos que nos esforçar para reformar as magnificências que moram nos detalhes da vida, o quanto de luta foi precisa, de sangue, de guerras, a historia da nossa historia é um genocídio, um banho de sangue dado sempre em cima das sabias palavras que iluminados profetas, verdadeiros escritores escreveram, os que devem corresponder vivendo, com a coerência daquilo que escrevem. 

 

E: Acho que nos esquecemos de nos agarrar no arrependimento e no perdão. Dois pilares da nossa casa interior.

 

R: O arrependimento é o que possibilita a reincidência, bem como o perdão, que dá condição para insistir naquilo que aos meus olhos é imperdoável. Você, nesse anos todos, conseguiu perdoar o seu marido? Fala a verdade.

 

E: Não querida Rosa. Não consegui e ainda não consigo, mas tento não pensar muito profundamente. O que os olhos não veem o coração não sente. Sinto que deixei de perscrutar com a mente o que acontecia dentro daquele lugar. Freei minha imaginação, minha condição, minha obrigação de refletir e chegar a uma conclusão, que me poria numa posição de ter que tomar uma atitude. 

 

R: Quando você carregava esse fardo sozinha, podia dissimular, e se esquivar da responsabilidade, daquilo que nos obriga a agir diante de uma visível, inegável situação, que pede uma resposta. Agora você não está mais sozinha nesse caminho, jornada de trevas, eu estou ao seu lado amiga, estamos juntas nesse pesadelo, o que te coloca em outra posição.

 

E: Sim, (entornando o copo) eu não posso mais esconder isso de mim mesma. Acho que tentei justificar de alguma forma, tentei entender, e me agarrei na boia do falso perdão, e me sustentei assim, com os preceitos da minha religião, fingindo que perdoava, como você disse, o imperdoável. Isso é o que a obrigação do perdão nos trás, mais fácil enfrentar em si mesmo, o que vai contra dois mil anos de afirmação, se queremos conseguir nos livrar do terror, pois ao ignorar ou perdoar simplesmente porque assim fui ensinada, é me tornar cúmplice, por isso essa mancha em meu peito, por não ter enfrentado ele de frente, não ter lhe partido a puta cara, perdoando sequer a mim mesma, pois esse seria o verdadeiro perdão, abandonar aquela casa, ou denuncia-lo a policia. O verdadeiro perdão é espontâneo e jamais uma obrigação. Eu sou conivente, e esse tempo todo onde os perfumes da vida foram me deixando entorpecida, no fundo somente me falsificaram, e hoje, olhando nesse novo espelho, sequer sinto se tenho ainda o direito de me chamar de mulher.

 

R: O cemitério ainda está de pé nas bases da tua casa. Ainda há tempo, e hoje você vai conquistar a coragem para fazer aquilo que eu não tive coragem de fazer. No fundo, fui pior que você, fui extremamente egoísta, e me dopei com o tamanho de um falo, o falo do motorista. Não que não nos envolvemos, Velerio é meu ombro, mas nunca confessei, como você, nem para ele, o que acontecia nessa casa. 

 

E: E aquele whisky? Sempre nos dá mais uma dose de coragem.

 

R: Virginia! (Virginia entra esbaforida com o whisky e os copos) Obrigada, pode deixar em cima da mesa, estamos mesmo precisando servimos a nós próprias. (as duas se servem, enchem o copo, colocam algumas pedrinhas de gelo)

 

E: E agora, já brindamos a morte, aos nossos maridos, agora brindamos a que?

 

R: Brindemos a vida, ou melhor, a vida ainda não, brindemos a ressurreição!

 

E: Estamos mesmo renascendo. Pela primeira vez em muitos anos, estamos tendo a coragem de enfrentar os nossos monstruosos maridos.

 

R: Você ainda tem essa chance! Eu me tornei refém do seu fantasma, e de minha própria covardia, ou melhor, um profundo egoísmo, que me fez me tornar mais uma ausente desse mundo. Uma alma vazia. A única forma que encontrei para aliviar minha dor, foi despejar suas cinzas na privada, e na ânfora, guardar os meus diamantes rosas, que também estão mortos, pois talvez por eles, eu, como você, me acomodei num mundo de mentira, e não disse as palavras que engoli a ferro e fogo. Filho da puta!

 

E: Os diamantes na ânfora e as cinzas na privada. Sabe, vou te confessar mais uma coisa. Muitas vezes, enquanto dormíamos, eu sentia uma vontade de mata-lo. Isso está em mim, esse odio, mas também não tive a coragem de me tornar uma assassina, não sei se por medo, ou por pudor. Me pergunto, se o tivesse assassinado, isso não me tornaria igual a ele?

 

R: Por um lado, talvez, mas apenas na ilusória aparência da vida. Existem países onde a pena de morte ainda se impõem como penalidade máxima. Isso porque, no fundo, admitimos que existe o imperdoável, e isso religião nenhuma conseguiu apagar, tirar o direito que temos de fazer justiça. Organizam uma burocracia para legitimar o assassinato, ou melhor, a reparação, mas é apenas uma forma de tirar de nós mesmos o direito de fazer justiça com as próprias mãos, porque não temos esse direito? Porque na moralidade viciada da ética, temos que controlar nossos instintos bestiais, e não podemos sozinhas ultrapassar a linha que delimita o permissível particular, onde se exige um exército, de uma aquiescência comum, da autorização da sociedade, mas não seria muito mais fácil, ao invés de atravessarmos cada etapa do julgamento de nossa presa, ou melhor, nosso agressor, que torna a morte muito mais fria, e quase torturante, calculista, como se a cada etapa enfiássemos a faca um pouco mais pro fundo, quase revelando o sadismo que existe por tras desse processo de julgamento, onde ao invés de lhe darmos um tiro direto na cabeça, vamos perpetuando essa sensação que transforma, em ultima análise, justiça em vingança. 

 

E: Eu quero ver esse homem na cadeia. 

 

R: Na verdade voce o preferiria morto, ficaria livre, com bens, e ganhava a chance de recomeçar uma nova vida. 

 

E: Como poderei encara-lo novamente? Como poderei continuar sendo eu mesma?

 

R: Onde ele está?

 

E: Não faço a menor ideia, me deixou aqui e ficou de vir me buscar.

 

R: Ele vem pra cá?

 

E: Disse que ficariamos um par de horas juntos, e que depois ele podia vir.

R: Então chegou a hora da verdade. Vou pedir pra Virginia recebe-lo e o pedir para entrar. Aproveite esse seu estado de consciencia, essa sensaçao pálida de embriagues, e vomite toda verdade. 

 

E: E vou dizer o que, seu bastardo pedofilo filho da puta, não sei se atinjo esse tom, vou precisar de mais alguns goles, copos, isso, de mais alguns copos.

 

R: Não seja por isso. (serve mais whisky)! Voce tem também a outra opçao.

 

E: Qual?

 

R: O perdão.

 

E: Perdoar. Todos esse anos que fui sufocada por esse homem, seu halito envenenado. Sua pose, seu finjimento. Como perdoar, um homem que se deita com outro homem, já é pra mim algo nojento, acho que a liberdade que hoje justifica esses comportamentos, essa legalização da pederastia, engolimos porque somos obrigadas. Nossa geração nao existia isso. Falam sobre o preconceito como se fosse um pecado capital, como se não tivessemos o direito de sentir preconceito? Eu ainda não me livrei dos meus e nem quero, e não tenho a menor culpa, pois nao encaro como preconceito, e sim como uma maneira de sentir. Não aceito e pronto. Hoje sou obrigada a aceitar, mas tenha certeza, que muitas como eu aceitam apenas porque é socialmente conveniente, politicamente correto, mas assim acabamos por fomentar ainda mais a hipocrisia de nossa podre sociedade.

 

R: E se fosse teu filho?

 

E: O que, meu filho, um...

 

R: Gay, vamos nos atualizar um pouco. Chega de chamar os homens de pederastas, isso faz parte do passado, hoje essa palavra é pejorativa, mesmo se etimologicamente um dia fez sentido numa sociedade que aceitava o início da vida sexual de um adolescente, dado pelas mãos de um homem mais velho.

 

E: Isso pode ser o embasamento do perdão. E se existisse uma sociedade onde fosse senao lei, mas costume, homens mais velhos transarem com seus proprios filhos, como já aconteceu em sociedades primitivas, depois que lermos a justificativa do parricidio inicial, dito por Freud, que nos ampliou a maneira de encarar nossos proprios desejos, e a entender o que carregamos dentro de nós, quando as filhas eram propriedade do pai, e pela inveja dos filhos, esses o mataram, gerando esse temor, essa culpa inicial, e esse inicio de uma nova ordem, onde as mulheres agora pertenciam aos irmãos. Se isso foi possivel, e se hipoteticamente, imaginarmos uma tribo, onde irmaos transam com seus irmaos, ao mando dos pais, o que na nossa civilização é um crime, mas ha menos de alguns seculos, esquecemos que as dinastias cruzavam se entre si, e mesmo com a deformidade, o risco que nem sei se era sabido, acredito que nao, somente pela observação,  eles nao tinham vergonha de deitar-se com seus irmaos, com seus primos, e acho bem que numa era mais feudal, as mulheres sempre foram estupradas, até recentemente, a força bruta do homem superava a moral, e o incesto foi se tornando um tabbo, pelos avanços da ciencia, que provou o risco de se dar a vida a uma pessoa com mal formação, aos debiloides, e isso que criou a semente inical, para tranformarmos nosso olhar, e começar reprovar atitudes que antes eram normais. 

 

R: Atitudes incestuosas. Voce tem absoluta razão. Mas ainda não respondeu minha questão.

 

E: Estou respondendo, não é algo facil e simples, mas acho que quando o filho é nosso, aquilo que desprezamos nos outros, se torna suportavel, talvez pelo amor que uma mãe sente, mas muitos pais nao aceitam, pois nao foram eles que deram a luz, e mantem-se agarrados aos seus valores mesquinhos. Gostaria mesmo de saber, meu filho constituiu familia, mas quando era criança, Christofan se aborrecia, e chegou a espanca-lo por acha-lo afeminado. Agora nao sei, se esse espancamento, essa aversao que ele sentia pelo filho, nao era uma revelaçao, ou sublimação da vontade de exercer seu desejo. Pois se faz sexo com crianças, o que o impediu de ter abusado do meu filho?

 

R: E voce sabe? Como pode ter certeza que ele nao foi abusado? Muitos meninos carregam esse segredo oculto até o fim da vida. Ele se dá bem com o pai?

 

E: Na verdade nao. Eu achei estranho ele terminar a faculdade e se mudar de país. Eles nunca se falam.

 

R: E voce nunca ligou um ponto ao outro?

 

E: Nunca pensei, meu deus, que homem maldito, nem mais lembro onde estava...

 

R: isso nao importa mais agora!

 

E: Importa, sim, estava no grilhão que a ciencia pôs sobre o incesto, sua proibição, por uma questao de etica, de preocupação, mas se hoje com a manipulação genetica, e o avanço dos genesticistas nessa área, onde é possivel identificar defeitos precocemente, e até corrigi-los, a mesma ciencia que trancou o incesto em quatro paredes, hoje tem a chave para libera-lo, pois se um irmao ama outro irmao, como dois homens, penso em gemeos por exemplo...

 

R: Voce acha que nao existe um direito divino sobre nossas cabeças, que nos inspira para atingirmos uma excelencia de conduta?

 

E: Mas claramente, eu acredito em Deus, mas se ele nos deu a liberdade, o livre arbitrio, e dois irmaos se amam, que direito temos de proibi-los, como sociedade, de sacrifica-los, pensando agora através dessa atual optica liberal que está desfazendo os antigos pilares do mundo, se querem dormir com eles mesmo, que durmam, nao é isso? Infelizmente minha vontade e maneira de ver o mundo não tem poder de tranformar o que já está concretizado. O mundo mudou. Somos mesmos velhas ultrapassadas, mas nao podemos ser julgadas, pelo proprio cerne desse novo modelo de sociedade, nos devem respeito, e nao podem nos obrigar a aceitar algo que para nós sempre foi inaceitavel. Não somos obrigadas a evoluir e a nos reiventar, a tranformar nossos valores so porque envelhecemos, ou porque o mundo andou. Admiro as mulheres que conseguem, mas me sinto em paz comigo mesmo. Esse tabbo do incesto, vejo que isso nao acontece apenas por uma questao cultural somente, moral e costume. Mas esse despudoramento da liberdade, que permite homens virarem mulheres, e mulheres virarem homens, porque nao um irmao nao pode dormir com seu proprio irmao? Qual santa hipocrisia que ainda regula os nós de nossa barca e sua direção? Se querem liberar, que liberem geral, e nao julguem, ligitimem o incesto, e façam desse mundo um palácio romano em pleno seculo 21. Meu deus, Chirstofan abusou do meu filho. (em lagrimas). Meu deus, diabo, do inferno, como posso permitir esse homem continuar  vivendo. 

 

R: Voce vai ter que enfrenta-lo. E lembre-se que legitimação do incesto é algo bem diferente da legitimação da pedofilia querida. Irmaos adultos e feitos fazem o que querem, crianças não podem se defender, e no fundo, existe uma camada no ser humano que está pouco se lixando  para isso, esse egoísmo fundamental, essa fúria insaciavel, essa deformação animal. Seu marido nao se deitou com seu cunhado, abusou do seu filho.

 

E: Vou é mata-lo. Que a justiça seja feita com as minhas proprias mãos. 

 

Escutam uma buzina. Alguem chegou para acalorar o mausoleu. 

 

 

                                   

                                   FINAL DO PRIMEIRO ATO 

 

 

 

 

 

 

 

                                                           ATO II

 

 

Ema pálida na chaise loungue, pressentindo o confronto com seu marido. Enche o copo de whisky, e num gole, sorve-o todo.

 

 

E: Gente minha. Em que perigosa e difícil, pavorosa situação que me coloquei. Não devia ter vindo aqui. De manha, um corvo morto quase no gradil de casa, sabia que algo não iria bem, deveria ter escutado meus pressentimento, pois a ave nada mais foi do que um vaticínio envolto pela morte. Vindo para cá, o maldito Christofan quase atropela um gato, e adivinhem a cor do bichinho, preto. Ele cruzou nosso caminho vindo rasteiramente do nada, quase batemos o carro. Esse foi o segundo sinal, que também nao levei em conta. Antes de entrar, uma pomba...cagou quase em minha cabeça. O terceiro sinal. Eu entro pra esse teatro diabólico, porque havemos de convir, esse encontro foi uma verdadeira tragédia. Mas tudo tem uma razão de ser, vou criar, arrancar coragem do meu útero, mas hoje esse calhorda vai escutar o que ele realmente é, saio daqui e vou pra delegacia. Mas as provas, como posso enfrentar um homem poderoso como esse, quem vai acreditar em mim? No fundo estou sendo carregada por um grande abismo, onde sou forçada a tomar uma atitude. Pensa Ema, pensa. A resposta está perdida em algum lugar nesse labirinto que temos dentro de nós. 

 

Ouve-se os barulhos, e a porta sendo aberta, Ema, nervosa, e já bem alcoolizada, preenche o copo, numa expressão abstrata, algo entre a fúria e o pânico. Entram Rosa e Valerio, que logo sente o clima de tensão pairando no ar. O contraste entre uma senhora já de idade e um negro tiçu preenchem a cena, é gritante. 

 

 

R: Ema querida, esse aqui é o meu...

 

E: Seu motorista! (aliviada) 

 

R: Sim, e não. Não exatamente. 

 

E: Como não?

 

V: Boa tarde senhora.  

 

E: Boa tarde! Um prazer conhece-lo, assim, desse jeito, digo, dessa forma, tão pessoalmente.

 

V: O prazer é todo meu.

 

R: Então, como dizia, ele não é meu motorista.

 

E: Não?

 

R: Não.

 

E: É o que então?

 

R: Meu amante.

 

Ema desconcertada. 

 

E: Ah claro, como não, eu já sabia (Valerio ri), digo, eu fingi que nao sabia porque achei que era melhor nao saber. Sabe, tem coisas que é melhor nos não sabermos.

 

R: Não fique acanahda minha amiga. Sei que está nervosa, pensou que era seu marido.

 

E: Christofan!

 

R: Sim, mas eu sabia que não. Conheço bem essa buzina.

 

E: Oras, entao porque nao me disseste nada? Me deixando aqui entre a aflição e o panico, me embriagando nesse malte, fervendo feito uma fornalha no caldor do sol.

 

R: Era pra te deixar sentir o prenuncio da erupção. Assim, quando ele vier, já vai ter experimentado em seu corpo, em sua alma, essa sensação de tremor, e o impacto será amortizado. Não será pega de surpresa, e terá mais coragem, a convicçao da coragem estará mais firme, enraizada em teus calcanhares.

 

E: Nossa amiga, achas mesmo? Eu estou povoada por furias e medos. Me sinto como uma metamorfose grega, amaldiçoada,  quando chega a hora do suplicio, como Hecuba, ou Alceste.

 

R: Não pense em maldição, e sim em libertação. Confia em mim, e nós dois, Velerio e eu estaremos aqui para darmos-lhe conforto. 

 

E: Claro!

 

R: Valerio, meu querido, por favor se sente, aproveite e se sirva porque o que tenho pra te contar é algo desproporcinal a qualquer possibilidade de razão, e por mais que eu saiba que deveria ter feito isso antes, também, como minha amiga, fui covarde, e não lidei com a situação com a devida altivez e razoabilidade que ela pedia. Sei que nao está entendendo nada.

 

V: Não cara Rosa, mas vejo que algo muito estranho, vejo o pavor por trás dos olhos da sua amiga, e o ar sombrio encobrindo essa sala. 

 

R: Sirva-se, por favor.

 

V: Não, obrigado. Prefiro me manter em condições.

 

R: Pois é, o que tenho para te dizer, e que nunca te revelei, em todos esses, anos, talvez por me sentir tão culpada quanto o falecido, é o motivo, o porque, fui procurar em teus braços a satisfação que me dás, para poder continuar enfrentando a vida.

 

Ema ainda desconcertada por ouvir assim livremente, e enxergar a sinergia e cumplicidade de um casal que para ela era de todo no seu mundo impossível.

 

R: Como nao gosto de rodeios, em assuntos extremos. Vou tentar ser a mais direta possivel. O seu ex patrão, o meu ex- marido... Sabe quando te disse que ele nunca me encostava, na noite que te dei o primeiro diamante?

 

V: Sim, lembro-me disso.

 

R: O motivo é um só.

 

E: Conta logo Rosa, o motorista, perdao, o rapaz está aflito.

 

R: O Doutor Eugenio, o nobilissimo e exemplar mestre das letras, era um pedófilo!

 

V: Não estou entendendo. Um que?

 

R: Um pedofilo. Um pevertido doente, psicopata, salafrário, imundo, calhorda, filho da puta.

 

V: Doutor Eugenio... ele conseguia ser tudo isso ao mesmo tempo, mas como assim?

 

R: Ele trepava com crianças.

 

V: O que?

 

R: Isso mesmo (balançando o copo nas raivosas mãos), ele fodia com crianças, destruia seus sonhos, as estuprava, as comia, as usava, as arrebentava, as esfolava, e sei la mais o que!

 

V: Meu patrao, um comedor de criancinhas?

 

E: Não eram criancinhas, eram crianças.

 

V: Jesus. Como voce pode viver com um homem desses, nao acredito, nao é possivel, um homem assim tão correto e digno.

 

E: De dignidade ele só tinha o titulo. 

 

V: Voce sabia disso e nunca me disse nada. Por que?

 

R: Sabe, dizer tudo isso de uma só vez. Esse lugar que escondemos nossos segredos, onde tudo que é oculto se submerge e se mantem escondido do mundo, porque ou ainda nao temos liberdade suficiente para mostrar, ou porque sabemos que de fato carregamos um delito, uma delinquencia, e nos escondemos por medo das consequencias, pelo olhar do outro, que nos verá nua, descoberta, como se estivessemos em plena nudez no mercado municipal, detalhando cada arranhão de nossa pele, nao essa velha pele que me cobre, empanada por rugas e marcas de uma velhice solitária e apodrecida, precocemente envelhecida, por carregar comigo um segredo que nao tem capcidade de ser mesurado, cujo peso é maior do que a estátua da Liberdade, um segredo mais obscuro do que o tumulo de lucifer, mas deformado do que os olhos de uma fera extinta por sua propria destruição. Sabe do que estou falando?

 

V: De um abismo?

 

R: Quase isso, mais profundo. Fui ao longo dos anos me acorrentando num pesadelo que nao tinha fim. Cada noite que o odioso voltava para casa, bebado, eu me trancava no quarto, nao chegavamos a trocar sequer um boa noite, pois eu nao queria me contaminar com aquele vicio, como se isso fosse infecioso, fosse algo que se pega, pela saliva contaminada de um pederasta, sodomita coroado pela infera coroa da pedofilia. Imagina o que é viver, e calada, e sorrir toda falsidade, quando era obrigada a acompanha-lo em algum lugar, o que me destruia e talhava cada vez um pouco mais, pois a farsa da minha personagem publica, infiltrou-se para dentro de casa, onde comecei a ser assombrada pelo meu proprio fantasma.

 

V: Mas porque nao disse nada para alguem?

 

E: O pior não foi nao ter dito nada a alguem, é nao ter dito isso para ele. Isso que me arraza a vida e me destituiu do direito de viver. Se ao menos ele estivesse vivo, teria a chance de redmir-me, mas como a morte nao avisa, quando faleceu ao mesmo tempo que sorri uma lagrima de felicidade, senti o punhal da caveira me tocando a espinha, e as algemas, essas que nos prendem em nos mesmas, e nao nos deixa nunca mais viver em liberdade, pois a chave foi atirada num caldeira de lavas satânicas e orgiasticas. 

 

V: Rosa, voce tinha que ter se livrado disso, eu nunca imaginei, achei que voces nao passavam de mais um casal infeliz, como tantos endinheirados por ai, que vivem escravos de uma aparencia que so convence os cegos. Mas nunca pensei que dormia, que era casada com um... um...

 

E: Monstro. E voce nao sabe o que aconteceu na minha vida que nos unio nessa maldição, eu e Rosa, unidas até a morte, nao pelo calor da amizade livre, mas pela junção de uma cumplicidade oculta, essa que criam pares que estao condenados a uma perpetua prisao, nao por um glorioso fato, mas por um horror.

 

V: Voce também está envolvida nisso?

 

E: Nossos maridos eram pareceiros... do crime, da pederastia, da pedofilia!

 

V: Dr. Christofan e Dr. Eugenio? Juntos?

 

E: Sim, meu marido e o dela frequantavam esse mesmo clube secreto, onde se vende meninos.

 

R: E ainda tem mais, eu usei voce como minha unica saida. Comprei seu amor, seu sexo, era a unica coisa que me aliviava, ser rasgada ao meio pelo seu tamanho, aquilo me devolvia a sensação de estar viva, e me abastecia, para continuar no pecado de todos nós, o pao nosso de todos os dias. Sei que se essa casa fosse uma igreja, e meu marido um padre, essa atitude seria de certa forma se não normal, mas tolerável, mas isso aqui é um templo das letras, da moral, da ética. 

 

V: E ainda somos vistos como um par de adultérios mal feitos. Se olham uma mulher com um homem negro, ainda existem olhos, em pleno apice dos direitos humanos e da conquista da liberdade de expressao, que enxegam um preto e uma branca, e algo dentro, apita, grita, o que esses dois tem em comum, como podem estar juntos assim, como se o que define o afeto fosse a cor da pele, aquilo que mora fora, ao invés daquilo que mora dentro. E esses doutores nos tratam como uma fria cordialidade, apenas porque nao tem outra forma de expressar o quanto se sentem superiores, e na verdade, os verdadeiros donos de nós, como se a escravidão não fosse algo do passado, mudaram-se as leis, mas essa gente ainda não mudou o olhar, a forma de enxegar o que é e o que define um ser humano. Basta uma fagulha, um pequeno erro, para ja alterarem a voz, e imprimirem no tom a pura verdade, o desdem e asco que sentem no fundo, que nao ousam revelar, porque alem de covardes, sao hipocritas, mas agora, sofrer preconceito de um sujeito que transa com crianças, e se acha no direito de ter preconceito a alguem? Como é feito a constituição moral de uma homem desses?

 

E: Sao carentes de qualquer tipo de moralidade, que é normalmente premida por uma certa ética, onde o bom senso impera, a moral é volúvel, a ética solida, a moral é mutavel, a ética um pilar, a moral é revista, a ética é alcançada, e como se fosse um farol, para o aperfeiçoamento da moral. Nossos maridos poderiam até ser imorais, mas se ao menos éticos, não ultrapassariam essa linha que tem que existir dentro e fora de qualquer civilização, pois senao o que seremos, o que seria de nós, senao algo pior que animais?

 

Va: Eu preciso de um gole. 

 

Rosa serve o amante.

 

R: Se esse olhar carnivoro impera sobre um casal cuja paridade de idade é proxima, o que seria de nos dois, se em publico nos pussessemos a passear, mesmo hoje, com toda essa liberdade, o nosso contraste por si só provoca as pessoas. O que tento entender aqui, é onde mora esse preceito, esse microbrio, que antecipa o ser, e o idealiza, e se perturba com algo que nao seja semelhante, ou igual a ele. 

 

E: O medo do desconhecido!

 

 

R: Se assim fosse a America nunca teria sido descoberta. Não, algo além, que foi sistematicamente costurado em nossa mentalidade, pois é como se a diferença do outro, gritante, que seja, negasse nossa propria existencia, como se ao se depararmos com o outro oposto, o barbaro, o judeu, o homossexual, nos inclinassemos a um precipicio, e nos sentissemos ameaçados em algum lugar, devido a uma nata insegurança da condição humana, que no fundo, imagino eu, ainda nao decifrou a si mesma, uma insegurança que faz parte de todo ser, que ainda vive num meio onde as incertezas sao muitas, talvez a morte, a certeza do falecimento tenha algo a ver com isso.

 

Va: Mas isso nao da o direito de... nem sei o que te dizer minha querida, estou mesmo perplexo. Acabou o whisky.

 

R: Virgiiiiiinia! Traga mais whisky... por favor! 

 

 

Uma leve fumaça, como se estivessemos diante da meia noite de um tumulo, começa entrar pelos cantos, trazendo esse efeito lugubre que preenche a sala com esse etéreo de um segredo oculto. Os personagens nao pisam mais sobre os caros tapetes, mas se mantem erguidos sobre esse véu , como se nao tivessem mais pés, que tocam as profundezas da terra, ou como se tivessem atingido um ponto, onde acima do bem e do mal, acima das nuvens, plainassem como almas de espiritos mortos. O efeito é simples, a camada do misterio humano sendo tocada mais de perto, a base de nossa socidade se tornando mais desconfiada e insegura, e velada, por onde a verdade se esconde, e o oculto que dá vida a toda e qualquer rosa, o milagre da existência, bem como o desconforto da morte, tomasse conta da casa, que cada vez mais sombria, se afunda no peso de suas proprias revelações. 

 

V: Aqui está senhora madame. Aproveitei e trouxe outro copo, pois...

 

R: Percebeu que dividimos o mesmo copo.

 

V: Perdao senhora. Eu nao me atentei...

 

R: Relaxa minha querida, aproeveite e traga mais um.

 

V: Está esperando mais alguem?

 

R: Não, quer dizer, sim, mas a proxima visita do meu licor nao bebera! É pra voce.

 

V: Para mim? Mas eu nem sei se posso beber, estou trabalhando.

 

R: Não se preocupe. Tire folga, vá menina, traga o copo e venha ficar aqui conosco.

 

V: Tudo bem, se assim a senhora pede. 

 

 

Virginia sai, e logo volta, levemente intrigada, claramente mais feliz, mas numa felicidade suspeita.

 

V: Aqui está!

 

R: Deixa que eu te sirvo, faço questão. Acomode-se.

 

V: A senhora vai me demitir?

 

R: Claro que não sua bobinha, vou te iluminar. Sente-se ao lado do Valerio, por favor.

 

V: Claro.

 

R: O que acha Ema, não formam um belo casal?

 

E: (sem saber o que dizer, atrapalhada) Um belo contraste!

 

R: Sabe Virginia, que por mais que voces dois, possam ser um belo casal, o que a sociedade de hoje já mais que suporta, posso dizer que admite, o que acharia se fosse eu no seu lugar, uma velha, com um negro?

 

V: Não sei exatamente o que pensar. Nem sei se posso pensar.

 

R: Pois é. Eu e Valerio somos amantes. 

 

V: Não vejo nada de mal nisso. Amantes de verdade?

 

R: Esse tipo de amor que deve ser mantido embaixo do tapete, ainda trancado no armario, mas onde o sexo existe em sua veemecia como em qualquer outro casal.

 

E: Rosa, está perdendo a noção da realidade.

 

R: Não, pelo contrário, estou esclarecendo o oculto que vive em nós.

 

V: Sabe que me sinto assim um pouco constrangido com essa exposição.

 

R: Voce teria vergonha de sair na rua de maos dadas comigo?

 

V: Eu, bem... acho que.. de certa forma, como posso dizer isso... 

 

R: Não se sentiria a vontade?

 

Va: Não exatamente, acho que os outros nao se sentiriam a vontade com nós!

 

R: Virginia, sabe que por todos esses anos eu convivi com um homem que se deitava com crianças?

 

V: Vocês nao tiveram filhos.

 

R: Não digo como ninar. Meu marido era um pedofilo.

 

V: O que é isso?

 

R: Ele abusava de menores, de crianças.

 

V: Batia nelas?

 

R: Não, fazia sexo com elas!

 

V: Santo Deus, senhor Eugenio, pelo santa virgem!

 

R: Percebe o que essa paredes calam, e voce, nunca percebeu nada, porque quando nao queremos revelar nossas entranhas, guardamos nossos segredos num cofre onde hacker nenhum consiga penetrar!

 

V: Hacker?

 

R: Não sou perita nisso, mas ainda minhas vistas permitem que eu  leia um jornal. Hackers, esses ladroes de dados da internet.

 

 

V: Acho que não percebo isso, estou meio perplexa. Meu patrao ser um homem tao sórdido, e a senhora, se me permite dizer, ter um caso com o motorista. Isso é estraho para mim, nao sei se conseguiria trabalhar mais aqui se ele ainda estivesse vivo, alias, nem sei se conseguirei ficar numa casa amaldiçoada, se me permite dizer, pelos demonios, pelo pecado.

 

R: E voce Valério, teria vergonha de sair de maos dadas com Virginia!

 

Va: Não, prorpriamente nao. 

 

R: Claro, pois se sente a vontade o suficiente, apesar de voce ser negro e ela branca, tem quase a mesma idade. Agora pergunto a todos voces, como eu pude sair, e me sentir a vontade, ao lado do meu ex marido? Percebem, que o que desautoriza um par de existir, nao é o exterior, quando existe um elo que esteja alem do puro interesse, dinheiro, status, imagem, por exemplo, e sim as culpas, os remorsos, a vergonha que se carrega dentro, que eu carreguei, por anos (descontrolada)... anos, quando a sociedade nao tem olhos de raio x para enxergar o carater de um homem, e aceita a podridao indecente no lugar de uma humildade ambiciosa. Não podemos mais permitir isso no mundo, e farei de minha vida, do que sobrou dela, uma luta pelas causas humanas, e assim irei tentar encontrar um certo direito a paz, por nao ter sido forte o suficiente para enfrentar o que minha amiga está prestes a reconquistar.

 

E: Reconquistar o que?

 

R: Sua dignidade de volta! Estamos esperando o seu marido chegar, nao vou explicar tudo de novo, mas o que precisa saber é que os dois eram cumplices em suas sujeiras. Ele vai buuzinar... e voce dirá que Ema está passando mal, e o faça entrar. 

 

V: Claro.

 

R: Nao seu preocupe Ema, pois agora irá falar. Estamos todos com voce!

 

E: Eu...

 

As buzinas aparecem no ar, cortando como faca as paredes sombrias da casa, como se fossem feitas de laminas ao invés de som. Todos empalidecem levemente, pois sentem  a presença da maldade, como se o Diabo em pessoa fosse entrar por aquelas portas. Virginai faz o sinal da cruz, e vai buscar o ditador. Todos em espreita. Christofan entra a machadadas, com a face da expressao de uma indignação descomunal, como se sua mulher nao tivesse o direito de passar mal.

 

 

CH: Posso saber o que raios está acontecendo aqui?

 

Valerio se levanta e se posiciona trancando a entrada.

 

R: Tudo, tudo de mais podre no mundo acaba de pisar nessa casa.

 

CH: A senhora está maluca, cheirou pó, que brincadeira e essa!

 

R: Não é brincadeira, é o fim do jogo!

 

CH: Vamos Ema, levanta logo esse seu traseiro dai, nao tenho tempo a perder, sua inconsequente.

 

R: Vai Ema, levanta, levanta e fala. E grita pro mundo todo ouvir! Anda mulher!

 

E: Eu me levanto sim, mas nao com meu traseiro, com a minha coragem.

 

CH: Voce também esta bebada, que descompostura, vou te dar uns tapas se nao sair dai agora mesmo.

 

Va: Fica na sua doutor, porque se alguem for apanha aqui hoje, esse alguem é o senhor!

 

CH: Seu negro idiota, com quem pensa que está falando?

 

E: Ele pode até ser idiota, mas não abusa de crianças.

 

CH: O que voce esta dizendo sua imunda!

 

R: É exatamente isso o que ouviu! Vai Ema, arrebenta!

 

E: É isso mesmo, seu pedófilo filho da puta!

 

CH: Enlouqueceu

 

E: Pedofilo, pedofilo, transa com crianças com se elas fossse seus animais de estimação. Não adianta mais negar, todo mundo sabe, eu vi, eu vi com meus olhos que caem da cara, voce saindo daquele clube secreto, daquele antro do inferno, daquele... daquelo.. ai, seu filho da puta.

 

CH: Sua piranha, velha, quem é voce pra me julgar, eu fodo com quem quiser, e voce e nem ninguem aqui tem nada a ver com isso. 

 

Va: Fode com crianças!

 

CH: Crianças nao, prostitutos! Quem sao voces pra me julgar? Ninguem aqui tem nada a ver com isso, ja me enchi o saco, saio desse embuste agora mesmo, e voce fique ai, se embriagando com essa sua amiga descarada, que fode com o motorista, ou pensa que ninguem sabe, voce, sua ridicula, nao se da o respeito, nao se enxerga, uma velha, se dando pra um preto, e tem coragem de vir me apontar o dedo?

 

R: Fodo, fodo mesmo! Somos ambos adultos e livres, temos nossa consiciencia, somos grande o bastante para respeitarmos os seres humanos, ao contrario de voce, que envenena nosso mundo, com essa sua doença bárbara!

 

E: Adimite seu velho asqueroso, eu me cansei de aturar sua farsa... adimite esse demonio que vive em seu coração.

 

CH: Eu fodo, e fodo mesmo. Não sao mais crianças ha muito tempo, perderam a inocencia da infancia  e se alguem as barbarizou eu nao tenho nada a ver com isso. Tenho coragem o suficiente para satisfazer meus desejos, e nao devo satisfação a ninguem. Ou voces pensam que vivem num mundo cor de rosa? Nao entendem nada da humanidade, do que existe entre as relaçoes humanos, somos todos prostituidos de alguma forma, essa crianças devem agradecer homens como nos, que lhes pagam e dao o que comer, olhem pra Africa, e vejam oque acontece por ali, humanos fodem ate com macacos, essa merda desse virus que devastou o mundo, e voces querem  colocar uma lupa sobre os meus habitos? Um negro, uma velha que se acha menina, amante do motorista, e essa mumia, que pelo menos se manteve calada... o que voce deveria ter feito, mulher ingrata, nunca reclamou, se sabia disso a tantos anos, porque agora, porque eram as joias mais importante pra voce, fez vista grossa, pelo que, por ouro e diamantes, é tão prostituta quanto essa crianças bastardas que me satisfazem.

 

Valerio da um murro na cara do Dr. Christofan, que cai para cima da chaise, no chao se levantando, agarrando sua mulher, D Ema, pelos cabelos, que grita, pedofilo filho da puta, e vai se livrando das garras do marido correndo para o canto esquerdo do palco, onde a anfora ganha um ponto forte de luz.

 

R: Seu monstro!

 

Christofan mete a mao na cara da mulher, Rosa e Valerio correm para acudi-la, Christofan da outro tapa, e um murro, os dois chegam por trás e o seguram pelos braços, homem corpulento em plena furia, Ema aos berros, chorando, Christofan cospe na cara dela, que berra barbaridades. Ela olha para a anfora, de marmore negro, e como se fosse uma pedra, bate com toda violencia de uma mulher sanguinaria, tomada pela ira e pelo odio, bate na cabeça do marido com a anfora, que se abre, e espalha os diamantes rosas pelo chão, da primeira batida, ja escorre sangue, ela continua batendo e gritando, ate o cranio do seu algoz transparecer. Rosa e Valerio o soltam, ele tomba direto pro chao, feio um tumulo sem direito a epitafio, todos perplexos, o sangue e o diamante se misturam no solo. A luz pisca tres vezes. Os personagens olham para o publico. A luz acende. Apaga novamete, terminando iluminando o cadaver ainda não apodrecido, e os diamantes rosas, levemente ocultos pela névoa. 

 

 

 

                                                    

 

 FIM





Dedico essa peça ao presidente da Globo, central de comunicações, ao presidente da Academia de Letras do Brasil, e aos vermes do SHOW BUSINESS INTERNACIONAL.

E principalmente, a toda equipe,  que tem me proporcionado  tranquilas e inesquecíveis  noites de sono. 

OBRIGADO