segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

DA MÃE

Era mais que meia noite, quando a mãe acordava de seu profundo sono, e como que enclausurada dentro de si, assistia um próprio espetáculo de um momento solitário e angustiante de desespero sem entendimento, de sensação sem motivo, de algo inalcançado pela razão, porem suficientemente real para desassossegar seu corpo naquela cama, agora fria e mau quista, de pedra, ardida em fel, e traiçoeira ao longo dos lençóis. O medo destilava seu éter entre as paredes do quarto, que a espremiam sem parecer, e aos poucos sugava o ar viciado e infecto que transbordava dentro do pequeno quarto. Estava sobressaltada e ao mesmo tempo sentia que soava frio, já que o tecido em baixo também estava encharcado, junto a fronha de seu travesseiro empapado das conseqüências de seu estado febril. A ausência do pai talvez lhe importunava no seio da alma, mas acostumada estava a solidão e ao árduo empenhar diário de se manter em segredo consigo mesma. Não teria motivos para se apavorar a essa altura do jogo, tudo estava mais claro do que nunca e em seus olhos acendia a certeza de se bastarem sozinhos no escuro. Não precisaria de ninguém mais, nem dos pais mortos, nem do bebe recém abortado, nem do pai. Tudo o que precisava existia bem ali, ao seu alcance, dentro daquela pequena casa escondida num ponto desse mapa disfarçado de mundo. Suas mãos, e seus filhos, que dormiam ao quarto ao lado. Alem dessas paredes era ficção que não importava, e na verdade, funcionaria unicamente como instrumentos dispersos, espalhados pela vida, para que conseguisse manter o que já de fato possuía. Não refletia muito além dos motivos pré-existentes, e nada queria de novo, nada a mais deveria interferir no modelo ideal organizado ao longo dos acasos e resultado de uma equação que se pensada em produto diverso se daria. Não, não teria porque se amedrontar agora, o pior já tinha passado, e o remorso de não haver sido o suficiente para aquela mãe defunta não corroia mais seus dias com ácido e veneno. Sua carne já estava retalhada por lagrimas incontáveis, que como água escorrendo em pedra, trazia a erosão para sua pele, vincando cada fossa de sua face envelhecida. Jovem era, porem jovem havia sido. Seu rosto hoje misturava o rosto de duas mulheres, uma do amanha, vinda precocemente do futuro, e outra do ontem, para sempre ancorada e petrificada no passado. Seus dias eram um enrejicimento completo, uma ancora impelia movimentos bruscos e secos, o que a adequava perfeitamente para o modelo padrão dessa rotina criada, dessa vida sem ambição, dessa resignação absoluta. Não haveria de olhar para trás, de frente o bastante para arrancar essa máscara de fortuita culpa dissimulada, pretexto para atrasar o que estaria naturalmente por vir, não haveria de entender que nada poderia ter sido feito alem do que foi feito. Sua mãe estava morta, e disso nada mais se extrairia. Não houve acidente, houve fato. Não existiu culpa, e sim desculpa. Nada mais poderia ser feito. O impressionante da morte é o absoluto egoísmo que pode fustigar e evidenciar através do sofrimento dos vivos, que fazem questão de atraírem para si funestos resultados quando insistem em sofrer numa proporção maior do que a própria vida, como se pudéssemos deixar de enterrar nossos mortos, como se pudéssemos nos condenar a existir para sempre. A força de uma ausência existe suprema quanto mais notada, e mais ausente se torna a presença dessa falta incontestavelmente presente, desse impossível absoluto, quase que afrodisíaco êxtase de se morrer junto todos os dias, estando vivo da maneira que se concebe estar vivo, da forma que se sabe o que isso significa, até o limite de sentir o que de fato é viver, do código criado para decifrar o que interpreta-se como vida, e da certeza que isso tudo de fato existe, e não é a morte, sendo esta algo diverso, que em tese, também existe, com a diferença de que nunca ninguém morreu antes para se saber se existe qualquer coisa além de vida! Os lençóis continuavam ensopados, e junto a sua respiração penosa e densa, o barulho da chuva apedrejava ainda mais seus ouvidos, martelando as telhas sem perdão, insistindo em demonstrar que a vida chovia, e que esta de fato era um temporal. O inferno deveria estar lá fora, mas será que o diabo já não haveria de estar dentro da casa?

Lentamente as imagens do sonho voltavam em sua memória, e se apoiavam distantes nos traumas mais reais que nos acompanham pelo resto da vida. Levava as mãos na cabeça, e as massageava, como se esse gesto fosse trazer alguma forma de alivio a essa agonia atroz revelada no meio de uma madrugada de tempestade, imposta pelas trevas da noite que se faria infinita naquele específico lapso temporal.

Sonho, pesadelo, realidade, os conceitos eram muito tênues, diluídos em sua afetada percepção naquele momento. Qual a fronteira que não seja subjetiva para segregar esses poderosos monstros?

Qual teoria permitiria que se fosse criado um nível aceitável para se classificar as coisas como sendo diferentes entre si? Como sendo melhores se sonho, ou piores se pesadelo, ou ambos se reais? Qual pesadelo não comportaria uma realidade, e não dialogaria com ela de forma mais cruel e dilacerante que o próprio bom dia de um marido bestial, podendo inclusive interferir o suficiente na sucessão de fatos que muito são tidos como extremamente reais? De que forma um sonho se difere do real, se estamos sonhando vivos, pois já nascemos de olhos fechados, nascemos mordendo a terra? A mãe ainda ardia em febre, e delirava aos poucos, sem água, sem fria água para aplacar o fogo vil que acendia suas pálpebras em chamas, e lhe conduziria para os escombros finais de seu insuportável mundo. Maldito passado que insistia em não passar nunca, que pela febre combustava em sua noite mau dormida, que pelo sono atravessava os bloqueios de suas artificiosas defesas, malgrado os protetores anjos que não a acolhiam quando sob o fado baixava os infringíveis olhos da treva.


A madeira da cozinha reluzia, peroba ou nogueira, reluzia opaca, mais pelo esforço da cera, do trabalho constante de lustrar, e limpar, e varrer, e depois novamente limpar, e muito sujar, todos os dias um pouco sujar, para limpar de novo, e varrer, com vassouras endiabradas esquecidas em área de serviço ausente, junto a copos e talheres e facas, espalhados, servidos ao longo da mesa de madeira reluzente; luz que invadia a cozinha, certa fobia de se estar confinado, preso em uma espera que não termina, que não acaba antes de se importunar com todas as ansiedades cabíveis numa pequena cozinha. Também tinha café, negro, como os cabelos de Maria que balançavam, que reluziam, mais que a madeira, mais que luz fria do dia, onde não se sabia se manha ou tarde, já que algo dilata-se no tempo dos sonhos, nos momentos que estamos acordados numa cozinha pendurada em algum lugar do passado, uma cozinha no inferno, ou numa casa abandonada qualquer, numa cova, ou até mesmo, uma cozinha no cemitério, uma cozinha para os mortos. O filho ainda não tinha, mas tinha barriga, tinha cabelos negros cumpridos e barriga, linda, meiga, cândida e pequenina Maria. O café para o marido passava, que da hora passava, e seus pés já balançavam, pois má sensação lhe aturdia, algo que enrosca-se no pescoço, como quando travamos o maxilar, e jura-se que o estamos quebrando com pressão e força, e de súbito acordamos com os dentes cerrados. Faltava-lhe ar, talvez não era mais dia, e sim, tarde bem após o entardecer, e luz não existia, nada alem de treva para alem da janela. O café preto esfriava, e dos seus olhos uma lágrima escorria. Assim esperava pobre Maria, sem muito do seu esposo conhecer ou esperar, já que grávida a pouco se fazia, e casar as pressas era tudo o que melhoraria sua situação. Casada, sozinha, ansiosa e com vontade de beber mais café. Frisava muito esse café, talvez por ser um motivo, ou um pretexto. Uns bebem café, até o cheiro do café forte presente se sentia, outros água ardente, outros ainda bebem veneno no fim do dia, ou até mesmo urina.


Nada se bebia, e a sua garganta estava seca, árida de vida e voz, emudecida de vontade de se mexer. Com uma mão apoiava-se no colchão, e um esforço extremo fazia para se levantar, infelizmente seus membros estremeciam, e numa queda ela voltava a deitar-se. A temperatura estava alem do suportável, seu sono a tinha exaurido. A tempestade continuava gritar implacável fora daquela singela cela disfarçada de casa, e os corvos insistiam em declamar os versos do desespero humano, petrificado por gerações intermináveis nessa eterna busca de se justificar a cada nascer do sol, a cada nota dada por um vento que sopra de longe uma poesia erudita por demais à sensibilidade por demais racional. Sua fraqueza era percebida em cada uma de suas células enfastiadas e engolidas pela própria metamorfose de se existir ao longo de uma continuidade que muda, que transforma, que pede pelo novo numa geladeira de criações congeladas e possibilidades esfriadas para sempre. A febre tenderia aumentar, e conforme sua degradação moral e sensação de insignificância penetrasse em sua percepção, mais estaria condenada a não abandonar seus medos, e não suportar o mínimo de interferência em tudo aquilo que já tinha estabelecido como normal, como aceitável, como digno. A ignorância lhe faria escrava dos próprios valores, e massacraria sua paz como as mandíbulas de um lobo faminto beijariam a pele de um gorduroso carneiro, o símbolo do sacrifício, o antagonista da vida colorida pelo real e profundo significado da liberdade. Os seus dias de dependência macabra haviam passado, os dias em que submissa a um marido alcoólatra lhe retiravam a autonomia de expressão e poder de significar sua própria vida, mas será que não fora substituída por uma outra dependência tão mortífera quanto, será que o que elegemos como absoluto não nos pode devorar na primeira oportunidade de prova? A vida haveria de lhe testar no caminho em busca da água, da partida de seu deserto rumo ao oásis daquela cozinha, a mesma cozinha dos sonhos, onde sua febre poderia ser atenuada, ou imposta fatalmente para o resto de seus dias. Não mais dependia daquele marido que abandonara o lar, havia contornado o poço com o próprio trabalho, afinal, a independência do outro é mais do que um alivio para qualquer câncer moral, devastador de auto-estima, aniquilador de sonhos. No fundo por mais que se atire aos ventos o quanto deve se lutar por ela, aquele que as rédeas na mao segura, conduz todp seu desejo para manter a carruagem exatamente no mesmo lugar, atolada no charco de seus “podres poderes” e mesquinhos domínios, já que assim, através do controle indigno e manutenção dos limites alheios, aplaca-se a própria incapacidade de existir sozinho, e se bastar sem a necessidade de manter a fogueira do ego alimentada pelas lagrimas do alheio, que infeliz, sustentará em sua vida a sensação de significado, advindo de uma subjetiva escravização do pobre que ainda tem-se como ente querido e amado, num amor sem limites, sem condições, um amor incondicional repleto de exigências e entraves, mas que ressoa protegido pelo ar de uma liberalidade solidária e absolutamente desinteressada. Sim, Maria havia se livrado de um marido, mas será que com ele também se foram as algemas?


Noite de treva,
Intumescida pelo charco de teus olhos,
Noite singela,
Vasta pelo medo do abismo
Do piso sem assoalho,
Do falar sem som,
Emudecido pelo nada que significa
Venha arrebatar dessa vida
O resto de dignidade,
Que sem alma petrifica,
A ultima possibilidade,
De uma felicidade merecida!!


Assim mergulhava a mãe em seus próprios calafrios, e ainda sem se retirar da cama, se via ofegante e perturbada pelas imagens de alucinações de um pesadelo vivo, de uma morte sem vida. Assim as almas dos anjos condenados voltariam para reconduzir ao inferno um ingênuo que julgava do martírio ter escapado, e da travessia sem madeira de cruz, sem calvário explicito, sem chagas e moscas que lhe zumbiam ao redor da carne, desfigurada pelo estupro da própria moral, e das mentiras civilizadas convidadas por ela, ter desviado.


E os demônios do interior lhe zombavam a cada instante noite adentro.


Demônio de pedra, pelo tempo cativado,
Em olhos de Fedra alimentado,
Olhos de Fedra com cores de Frida
Recobre teus sentidos, e revelado,
Disforme em amor desfigurado,
Em ódio semeado,
Busque teu fim ,em forma aclamado,
E restitua o movimento,
Em teus membros engessados!
Ó, clamor de vozes noturnas,
Sinfonia macabra,
Se faça presente, e do intimo
Desse infeliz sorridente,
Se transforme, e em parto indesejado,
Não se mantenha apartado,
Revelando face transluzente,
No canto esquerdo do espelho
Em notívago reflexo,
Que da alma o corpo se faz ausente,
Em felicidade sem sabor,
Para sempre no externo cume,
Reinar absoluto,
De luto sincero,
Demônio do interior!



E a chuva ainda caia lá fora...

sábado, 18 de dezembro de 2010

(Caligu) Lua

Eu sou como a Lua, perversa na silente camada que encobre o céu, sou dissimulada e invisível em minha totalidade, e ao mesmo tempo, brilhante em tudo que mostro para cada par de olhos que para sempre obrigados estão a me enxergar…

...a sentir o perfume de minha luz, esparramado pelas incontáveis fendas da escuridão na Terra, pelas trevas interiores dos seres que ainda se rastejam em busca de compaixão, de auto piedade, de uma mísera faísca de prazer que nada significa ante o espelho incontestável da solidão de uma velhice que rasga a carne, inexorável, e inunda os dias com a banalidade mais atroz cabível dentro dos repetidos gestos de desespero!

Sim,

Silente e intocável, como um piano fantasma flutuado nas espumas do oceano. As brumas do tempo congelado num mar de pedras e remorsos, e amores naufragados no abismo do desejo...

Sou secreto e intolerável, e mesmo assim, sondado eternamente pelas presas canibais da ignorância primata do instinto, da cegueira no palácio dos odores de tintas e cores impenetráveis,,,

Para que serve a loucura, senão para diluir a dose atroz de realidade advinda com a reflexão? Para que serve o vinho senão para manchar os lábio e calar a boca do outro que exibe a piada fracassada de sua própria existência?

Ébrio e intolerável, caminho vacilante no equilíbrio, porém, com toda certeza devastadora de não precisar de seus olhos para enxergar... de suas mãos trêmulas ante a ameaça de perder um flash na capa de revista mais vendável, na revista de um pente fino numa amizade oculta por uma seda negra que encobre o delírio, a perversão, e a vontade pura de aniquilamento,,,

Descontrolado ao ponto de evidenciar a loucura desinteressada do amor, e ser julgado por isso pelas chamas ardentes de uma fogueira transformada em peste, no câncer social de devorar aquilo que denuncia a falta de brilho e coragem, o próprio reflexo da ingratidão nata para aqueles que mais que a mão, estendem o coração sem pedir o sangue de volta...

Não existe propósito no incondicional, não existe condição quando se de fato é...

As taças permanecem para sempre cheias, transbordando no vazio habitado de um bar...

Os cigarros eternamente acesos, apagando as mãos que com tanta ansiedade tragam a própria alma disfarçada de fumaça...

Sinto o silêncio de uma noite perdida no espaço,

Sinto a mim mesmo na dificuldade da vida...

Sou a dor da transformação, e a aceitação da crucial distância que sempre existirá entre um e outro, independentemente do jogo e das cartas, todos perdem num vínculo sem memórias, num banho de sangue, onde o aparentemente mais fraco serve a todos que acreditam serem fortes, mas que no esquecimento, utilizam a ironia para não rir da deficiência em comum, do total e absoluto desamparo, do homem e sua insegurança...

Sou como a Lua, que revela as imperfeições sem pedir licença, que bebe das águas dos mares sem encostar, e que não cobra nada pra enfeitar o céu, para insinuar o mistério e a poesia, e para seduzir tudo aquilo que se permite um instante verdadeiro de paixão...

Para que temer o absoluto?  Para que refrear o inevitável, e dizer não quando todos os poros são preenchidos pelo bruto querer... pela flor infinita do romance perpétuo?

No perfume da noite respiro a solidão de um astro, e perdido no ponto certo de um universo, sinto a dor e o prazer de ser uma única galáxia, uma estrela que se multiplica diante de um olhar de cortesia, que brilha quando encontra o sincero, e na oportunidade dos desfiladeiros do dia, depara-se com um abraço que é de verdade uma ponte....

E mesmo na moderna extinção do homem essencial, ainda respiro o seu cheiro, e incontestável, caminho em seu percalço, mesmo no sensorial do automático incômodo causado, dou inalterado meu gesto e minha atenção, e como todas as outras luas que já morreram, resistirei a viral hipocrisia do reconhecimento até o ultimo instante, nem que para isso, tenha que ser a única lua no espetáculo do céu!

E depois dela, nasceu o Sol!



Fernando Castro

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

TEOaGONIA

Acordo, ainda me doe o peso das pálpebras. Sinto-me como um papel úmido em branco a um passo de desmanchar-se. O frio do despertar me toca os ossos. As notas distantes de um piano me tocam na espinha. E por minha medula, percorre o medo e o silêncio da palavra. O que se tem a dizer? Num mundo fantasma de sombras e futilidades, como ser científico e não prolixo? Como não ser redundante e  sim autêntico, no esgotamento da originalidade, onde tudo soa envelhecido, como o mofo que assola o armário, como a penumbra no esgoto? A vida lhe ultrapassa sem pedir licença. As pessoas fazem parte da vida. E você, faz parte do que? Morremos na tentativa de decifrar o mundo, que em última análise, é a tentativa de decifrar a si próprio, e não perecer na mediocridade do banal, do ser comum sem iniciativa. Tantas ferramentas postas na garagem, o que fazer com elas? Será mesmo útil, será mais do que egoísmo? Nenhuma filosofia parece fazer sentido, nem mesmo o ceticismo. Porém, difícil é acreditar em qualquer coisa. Difícil é aceitar que se tem que acreditar, como um remédio para dor de cabeça, elegemos um ídolo para não ficar vazio o altar, mesmo que esse ídolo seja você mesmo, quando o terror do Narciso é que após ler sua própria história ele se depara com a ciência do seu afogamento iminente, e com a impotência ante o nada que poderá ser feito. O tempo de fato parece existir apenas na pele, o retrado de Dorian na calvície dos dias, e na paralisia dos músculos das pernas. A língua se cala e não beija mais. O silêncio abate a voz da dança, e o sangue evapora como orvalho esquecido na manhã, soterrado pela emancipação da aurora. Carne e pensamento apodrecendo dentro de um corpo transfigurado em uma jaula. O escravo se alimenta de ordens, e o senhor, será que se basta alimentando-se de escravos? Será que sua perspicácia infalível não o iguala ao mesmo escravo dolente ao chicote e mudo em sorriso e desejo?


Rasgo a cortina de meu quarto e arremesso o relógio no chão. Fecho a janela para o mundo não entrar, mas seus tentáculos passam pela fresta da porta. Sua escuridão aparece ao meio dia, na visão perturbadora do mundo cotidiano, em uma cena cotidiana, num cruzamento cotidiano. Um poste de ferro segura uma caixa preta com luzes que se intercalam, e determinam o movimento de automóveis, pressupondo-se absorvido o sentido preconcebido para essa palavra. Auto-móvel. Automovente. Auto funcional. Um transporte ou um assassino? Um amontoado de metal, de tinta e tecido, e combustão, sobre a mesma idéia milenar repetida a exaustão chamada roda, uma simples roda da pré-história e de borracha move o mundo, chamada pneumático, vulgarmente conhecido em sua forma abreviada, curta: pneu! Encurtamos tudo para facilitar a vida, inclusive a morte, quanto mais as palavras. Em breve não existirá mais vogais, nem eu nem vc, mto em breve tdo desaparecerá na ansiedade de se facilitar as coisas. Ficará fácil demais, não precisaremos nem nascer, quanto mais morrer!

Um pássaro grita no fundo, e atira no imaginário a sensação de um pântano fantasmagórico no meio da cidade infernal. O eco do caos em cada freada de ônibus sob pressão. Na lotação do silêncio, ficamos sufocados de tanto dizer nada que de fato importa, nada que não seja uma migalha para os pombos infectados, uma piada; e para as galinhas fáceis e fabricadas para serem servidas na hora do almoço. Um frango frito, desmanchando-se na boca todo o sabor plástico do supermercado. Não existe mais tempero. Engolimos o mesmo sabor, o mesmo esperma, a mesma angústia de ter que se engolir algo para não sufocar. E as pessoas ainda se casam e têm filhos. Por incrível que pareça, mesmo com todos os bueiros destampados, a humanidade consegue se proliferar. Gafanhotos e bebês juntos na maternidade do mundo. Não damos conta de limpar nossas fezes, e continuamos defecando dentro do quarto, na suíte presidencial do desespero, matrimonial do suicídio, e liberal do capitalismo moderno. Pelo menos ainda nos resta um pingo de dignidade, e de intimidade, já que por enquanto as casas ainda não são fabricadas com câmeras nos quartos. Podemos urinar nas paredes e ninguém ficará sabendo. Podemos até mesmo engolir urina sem avisar ninguém. Fantástico! Deveríamos fazer isso mais vezes, certamente sentiríamos mais o gosto da vida e sua mudança do que quando saímos de casa para votar. O gosto seguramente será menos plástico do que a lasanha congelada no inferno de um freezer. O sabor de líquido quente escorrendo pela garganta e se dirigindo para as nossas entranhas. Daí a Cesar o que é de César! Venha a nós o nosso próprio reino. Na nossa sacristia pessoal inventamos o nosso próprio vinho, Chateau Margaux, e devoramos nosso próprio Penteu, la merd, vive la merd, c’est tout ce qu'il y a! Realmente sempre foi muito mais fácil engolir os líquidos do que os sólidos. Não precisamos gastar tanta energia. Não precisamos fazer muito esforço em um mundo que abrevia as dificuldades. Não precisamos mastigar. A fumaça também é fácil de engolir, mesmo com as pessoas morrendo de câncer, a fumaça continua sendo fumaça, entre os dedos, no cigarro, entre os ossos, no crematório. No crematório divino que é a vida, para onde vamos depois de incinerados? Para onde vai a fumaça que caminha em direção ao céu? Talvez as lagostas também serão extintas, como os dinossauros. Talvez sobre apenas o sabor artificial dos crustáceos, e do homem que caçava lagostas. Será como um sonho, e Hesíodo não fará mais sentido fora dele. O homem será o único mito intacto, porém, depois da fissão de seu próprio átomo, quem restará para contar sua história?
O que sobra além do amor quando estamos acordados? Será que no indigitado altar cabe qualquer outra coisa que não ele?



O que sou Eu?

Invalidado pela incontinuidade do amanhã
Sabido não eterno em corpo de criança crescida
Uma Rosa que o tempo prometeu
No seu esplendor,
Envelheceu!
Esse sou Eu
E um pouco mais
De fome de dias que não voltam
De um tempo deixado para trás
Junto a ânsia das horas que faltam
Para um pouco mais
Experimentando do novo indiferença
No ausente eternizado pelo imaterial
Sou o físico se desmanchando
O pedaço de pétala de um sonho mortal
Acordado antes mesmo da noite acabar
Pelo ponteiro parado sem tempo
De vida, envelheceu
Enforcado no carrilhão das almas
Devir no amanhã sem hora
Esse sou Eu
Tempo que envelheceu
No ontem do agora
Esse sou Eu
Infinitamente
Resfriado pelo gelo
De um único fio de cabelo
Sustentando meu tempo
Que chovendo lá fora,
Se perdeu!


Fernando Castro


Boa noite,
Para todos os anjos que me cercam,
e para todos os sonhos que me aguardam!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

LAOCONTE

Olhos não se fecham no final,
Atemporal sentido na carne
Em queda de muro divinal,
Um mural de sonhos e pesadelos
Destroçado pelo cume bestial,
Na selva de demônios e anjos
Brindando no cego desespero
As conseqüências do imoral
Onde os anjos se perderam
No limite perecível
Entre o divino e o carnal!!


Entre a luz e a escuridão,
Ainda restava uma saída,
Quando a carne apodrecida
Dizia sem perdão,
Não mais escutais as lágrimas funestas
Dos tantos imorais, e recusais abrigo
Aos profanos festivais
De teu sangue com teu sangue
Na carne de teus pais,
De teu irmão com tua irmã,
Nas montanhas em bacanais,
E se livrai dos corpos tantos
Amontoados aos pés dos santos
Que gritam o despudor enjaulado em
Terços brancos e castiçais,

Expulsais, expulsais,
As velhas bruxas dos seus conventos
E arrebatais os vetustos padres
Imorais, brindando a pedofilia
Com a batina, e sacralizando
Os meninos com seus punhais...
Não mais, não mais,
Pediam os verdadeiros santos
Que com seus chifres assustais,
O vermelho em sua pele
Transformais o mito da visão
E fazei do pranto algo para libertar
A morte de todos os santos
No vestido tão manchado de branco
Da santa virgem recalcada nos vitrais

Expulsais, expulsais,
E gritais para nunca mais,
Ser violado o sepulcro do amor
Em todo horror que triunfais,
Em todo pudor que dissimulais,
Quando veste a noite as tantas
Fadas, prostitutas imorais,
E juntas desfilais, acendendo
A tocha insana do ego
E suas conseqüências insanáveis
O ego despedaçado, destroçado
Por uma fúria sem precedentes,
Um cavalo sem medidas e pudores
Devorador mais que a serpente
Que se enrosca
Mais que o perpétuo lenço
Que sufoca
Encharcado de sangue inocente
Por uma civilização belicosa
Milenar, construindo suas escolas
Em cima de ossos e cadáveres
Das tantas Hiroshimas e Nagasakis
As Rosas belicosas
E os Cogumelos da destruição
Criando os seus filhos em abismos
Sobre a mesa de chá
Dos lares insepultos
Sobre o abraço da jibóia
Das tantas cidades do futuro
No amanhã de antes de ontem
Das tantas e tantas Tróias
Varridas e socorridas pela chama
Expurgadas pelos beijos de Napalm
Carbonizadas em Jesus Cristo
Nas noites serenas de Natal

Santo Deus,
Expulsais, expulsais,
O demônio líquido e negro
Do óleo que acende as chamas infernais
Extraído do submundo
Do inferno na Terra
Das profundezas do Malebolge
Nas noites que perscrutais
Como morcego de Judas,
Nos vícios infiltrais vossa medida
E mandais, mandais
Rouco dissonante
Sufocar com as próprias mãos
O profético grito de Laoconte
E seus filhos devorais,

Devorais,
Sua carne cética
Para com vossas ladainhas infernais
Mastigais, mastigais,
E voltes para mim
Com o diabo no corpo,
O sangue negro na bandeira
Dos desertores e desterrados
Mutilados,
Mastigados por minhas mandíbulas
E com a certeza apática
De uma redenção incondicional
E criança, nunca mais,
E desejo, nunca mais,
E nos teus gritos e sussurros
Vermelho será a parede de tua alcova
No silêncio de tua filosofia
Escatológica
Onde os vermes sobrepõem o pensamento
E no dote infernal
Do meu falo cavalar
Destroçarei vossa muralha virginal
Para desespero de toda castidade
Dos pequenos filhos de Laoconte
Devorados nas águas de sal
A beira da praia em temporal
De um pesadelo em chamas
No mundo moderno
O abraço da jibóia
Devora-se assim
Com um beijo do inferno
Os aclamados filhos de Tróia!!!

Fernando Castro

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Moonlight Sonata

Lua inabalada, brilha contra qualquer dizer,
E mesmo escurecida, calada, no toque de um lado obscuro,
Onde a chama humana não pode ver,
Também será Lua, e também estará lá....
Caminhando solene, desesperada por sempre ser a mesma terra que lhe cabe, o mesmo pedaço de ser,
E mesmo sem querer, será Lua, mesmo sem saber que é...
Entre nós está o infinito, mesmo sem querer...
Entre o meu amor e o seu corpo de lua, infinita, está tua decadência perpétua e inatingível,
Os teus goles remotos no passado enterrado pelas lágrimas do presente,,,
Um presente de casamento entre o ser que não se tem, e o ter que não é...
Ainda sinto teus beijos dilacerando minha carne,
Os teus peixes carnívoros num aquário de plantas imortais...
Ainda sinto o teu perfume de palavras navegando pelo meu pensamento... e os teus olhos de lua, percorrendo a vastidão de minha noite e iluminando o profundo silêncio abaixo de meus pés...
Toda possibilidade um dia já foi impossível
Toda saudade um dia já foi encontro
E por que?
Será esse o verdadeiro tempo?
Somos filhos do passado, e pais do passageiro, que anda, e que voa, e vive para se dispersar, no mundo da Lua, na terra do inefável beijo imortal...
A inefavibilidade do lado negro lunar também está lá...
Independentemente de se crer ou não se crer, as trevas também gritam na imensidão do satélite,
E se não gritam, mesmo as escutando, não será a nossa loucura suficiente para lhes dar a voz!
De volta ao princípio.
O que fazer quando somente o trauma leva ao raciocínio?
Raciocínio que conduz de volta ao trauma
O que fazer quando todo conhecimento nos guia de volta para a mesma perplexidade que o criou?
E as mãos continuam agarradas no vento,
E o abismo,
Dependurado em baixo de nós
Todas as noites, o mesmo silêncio ao luar,
A mesma Lua nos enxerga, sem falar, emudecida pela própria onipotência fecunda que dela brota,
Injustificável, não precisa falar,
Muito menos explicar porque é Lua, e porque será...
Somente ser, e pertencer a classe das coisas que não precisam de respostas
O milagre que não se pensa
O retorno que não volta
A luz da escuridão
Na Lua que habita a alma, impenetrável
Razão sem saber
De toda inenarrável
Viver e morrer
Não nos é dado escolha,
Nem de vir, nem de partir
E mesmo na ilusão do controle
De se atirar ao precipício,
Todo o peso do mundo o empurra, sem o pobre saber, pois já que se tem o poder,
Por que não faz agora?
Isso, vamos,
Acabe logo com isso,
Agora...
...
Não pode, não é verdade?
Pois então,
Esta fora do seu alcance,
Fora de nós
Do tempo sem hora
Estamos todos juntos
Morrendo aos poucos
De tanto que vivemos
Sem perceber que existe um tempo
Que devora, devora
E nem eu nem você
Será Lua ou Aurora
Para brilhar fora
Do tempo abreviador
do nosso tempo de outrora
onde sem pensamento
brincávamos juntos na demora
de perceber o sofrimento
e na poesia senhora
do tempo sem tempo
assistindo de mãos dadas
sem hora,
as gotas das chuva,
caindo lá fora!
...



F C